A arte de ser humano

Por William Van Gordon & Edo Shonin

     Há cada vez mais gente interessada em praticar mindfulness. Talvez isso seja um reflexo de um desejo crescente por uma vida mais calma e conectada com uma parte mais profunda de nós mesmos; ou, então, talvez reflicta apenas um desejo de se estar na moda e participar de uma tendência de estilo de vida recente. Seja como for, acreditamos que se  5% da população de cada país praticasse mindfulness os benefícios que daí resultariam para o bem-estar deste planeta seriam imensos. Isso significaria que pelo menos uma em cada vinte pessoas experienciaria plenamente a sabedoria do momento presente, observando de perto os seus pensamentos, emoções e processos mentais, escolhendo como agir em resposta a eles, em vez de ser por eles comandado. Isso significaria que em cada reunião de governance – política, militar ou empresarial -, haveria um ou dois indivíduos que, guiados pela sabedoria da atenção plena, poderiam introduzir um olhar mais espiritual; e o mesmo aplicar-se-ai em relação a todos os outros tipos de encontros, aparentemente com menos impacto, tais como conversas entre amigos num bar ou nas redes sociais, debates entre estudantes universitários ou troca de ideias entre pais enquanto esperam pelos seus filhos à porta da escola. Uma pessoa enraizada no momento presente é como o brilho de uma estrela que pode ser usada para ajudar a navegar na escuridão, porque os seus pensamentos, palavras e acções são inspiradas pela sabedoria e pela compaixão. São indivíduos que nutrem os que estão à sua volta e apontam o caminho para aqueles que querem deixar para trás uma vida sem consciência e encontrar o seu Eu interior. A sua capacidade de melhorar o futuro deste planeta não deve ser subestimada.

    Nos últimos seis meses, trabalhámos com comunidades de meditação realizando workshops, retiros e palestras sobre temas relacionados com o mindfulness em vários países do Oriente e do Ocidente. Alguns desses eventos tiveram âmbito internacional e, portanto, contaram com a participação de professores e de outros profissionais com intervenção na área do mindfulness, reflectindo um leque mais alargado de países do que aqueles que visitámos.  

    Consequentemente, recebemos o que pode ser considerado de uma radiografia do estado actual e da qualidade da prática de mindfulness em vários países. Embora estejamos cientes de que ela não reflectirá todos os países ou comunidades de práticas de mindfulness, podendo até estar limitada pelos nossos próprios pré-julgamentos e percepções, algumas preocupações vieram, no entanto, à tona.

Ser usado pelo mindfulness

    Dado que há cada vez mais gente a praticar e a ensinar mindfulness, interrogamo-nos se isso não acarretará um custo tanto para o praticante como para a sociedade em geral. Para sermos  mais claros, há pessoas que parecem mudar de personalidade quando começam a praticar ou a ensinar mindfulness, tornando-se ou demasiado austeras ou tentando agir de uma determinada forma que elas acham ser o modo apropriado a um “meditador” ou a um ser espiritual. Ficam tão preocupadas em parecer mindful, que toda a sua tensão e superficialidade tornam-se visíveis. Deixam de saber rir e de ser espontâneas, esquecendo-se de como é ser um ser humano.

    O nosso conselho para os que desejam aprender a praticar ou a ensinar mindfulness é de que não fiquem obcecados com o foco da atenção no mindfulness em vez de se concentrarem em ser bons seres humanos, com todas as capacidades inerentes a essa condição para sermos alegres, amorosos, altruístas e espontâneos. Não precisamos de mindfulness para cultivar essas competências humanas fundamentais. Se nos sentirmos irritados ou irados, podemos escolher ser pacientes, amarmo-nos a nós e aos outros e atentar sobre a futilidade das palavras ou dos actos danosos. Há sempre a opção de nos livrarmos do mau humor e apreciar o quão afortunados somos por viver nesta terra e sentirmo-nos alegres e vivos. 

    Algumas pessoas parecem acreditar que o mindfulness pode ser usado ou para mascarar o ego ou para encobrir problemas que carregam consigo. A atenção plena ajuda-nos a tomar consciência sobre aspectos inábeis ou que requerem mais atenção, mas é preciso mais do que mindfulness para erradicar tendências comportamentais desadaptativas profundamente enraizadas. Em primeiro lugar, o crescimento psico-espiritual duradouro exige um verdadeiro comprometimento neste processo de mudança. Isso requer estar ciente sobre a necessidade do muito trabalho e compromisso necessários para que a mente evolua e compreenda.

    Só quando cultivamos esta intenção firme de desenvolver tanto a dimensão pessoal quanto a espiritual, é que podemos começar verdadeiramente a trabalhar em harmonia com o mindfulness e obter o máximo benefício da prática. Sob tais circunstâncias, o mindfulness pode ser como uma lente que nos ajuda a concentrar e a obter uma compreensão mais profunda da nossa anatomia psicológica. Podemos, então, fazer intervenções apropriadas e reduzir hábitos cognitivos e comportamentais inábeis.

    Mas se começarmos a praticar ou a ensinar mindfulness sem antes compreender o seu papel e grau de trabalho árduo exigido pelo autocrescimento, então, em vez de utilizarmos o mindfulness como uma ferramenta, passaremos a ser usados por ele. Se não formos diligentes, o mindfulness tornar-se-á escravo do ego e servirá apenas para fortalecer uma predisposição para a ganância, a superficialidade e a preocupação com o próprio. As pessoas que são usadas pelo mindfulness podem ser levadas ao engano, a si e aos outros, quanto à sua capacidade como professores ou praticante de mindfulness. No entanto, tais indivíduos não têm lugar na linhagem atemporal dos verdadeiros mestres espirituais e deixarão esta vida confusos e de mãos vazias.

Trabalhar em harmonia com mindfulness

    Quando entendemos que o compromisso e a intenção estão subjacentes à prática efectiva de mindfulness, podemos então começar a trabalhar em harmonia com a atenção plena. Usando mindfulness, podemos observar os pensamentos e sentimentos inábeis à medida que estes começam a crescer dentro de nós e transformá-los antes que eles se apoderem e ditem o nosso comportamento. Podemos examinar o que levou a tais pensamentos ou emoções inábeis, e, ao fazê-lo, devemos esperar que o ego tenha desempenhado um papel central na  sua formação. Como a luz forte usada numa cirurgia, o mindfulness é como uma luz na mente para que a possamos ver com clareza e entender a melhor maneira de nutrir qualidades saudáveis. 

    O que procuramos elucidar aqui é a existência, quer de um elemento passivo, quer de um elemento activo no mindfulness. O segundo envolve observar o que está a acontecer dentro e fora de nós. Com base nessa observação, podemos julgar que tipo de intervenção pode ser necessária. Isto desencadeia o elemento activo do mindfulness, podendo exigir o desfazer de processos mentais destrutivos dentro de nós, ou o direccionamento de outros para comportamentos mais saudáveis. Alguns indivíduos acreditam que o mindfulness requer não fazer julgamentos e que apenas pela observação da mente os problemas simplesmente se dissolvem e passam por nós. Mas isso não é verdade. O mindfulness exige julgamento, que advém da prática da equanimidade e da clareza da observação, e envolve acção ou intervenção a partir da compaixão e da sabedoria. 

    Trabalhar em harmonia com o mindfulness é uma experiência, embora desafiadora, bela. Quando não tememos arregaçar as mangas e pôr mãos à obra, o mindfulness – e o momento presente com o qual ele nos põe em contacto – serve de guia no caminho espiritual da consciência plena. Através do mindfulness podemos perceber a direcção a seguir, onde encontrar apoio espiritual e os obstáculos a evitar. Quando usamos o mindfulness correctamente, isso ajuda-nos a cortar o cordão do ego que está subjacente à ignorância e ao sofrimento. 

    Trabalhar em harmonia com o mindfulness permite-nos ser realistas e fieis a nós próprios. Na verdade, a essência da prática de mindfulness consiste em abraçar tudo o que se relacione com ser um bom ser humano. Isto significa aproveitar, de forma responsável, as belas paisagens, os sons, os cheiros, os sabores e as sensações que este planeta tem para nos oferecer. Significa verter uma lágrima quando estamos tristes e rir quando estamos felizes. Significa estar apaixonado, comprar uma casa, cuidar da aparência física ou sentir entusiasmo com a carreira profissional. Tanto os que praticam mindfulness como os que vivem de forma não consciente experimentam sentimentos de desejo, impaciência, felicidade e contentamento. A diferença, no entanto, está em que os últimos são escravos desses sentimentos, enquanto que os primeiros têm a coragem de confrontar e permanecer plenamente conscientes sobre o que está a acontecer dentro e fora de si. Observar e envolver-se conscientemente com o momento presente durante o quotidiano colocar-nos-á em contacto com as circunstâncias e os desafios necessários para cultivar todas as competências psico-espirituais necessárias à evolução da mente. Sob tais circunstâncias, não precisamos procurar o caminho porque pelo simples abraçar do que significa ser um bom ser humano, já o caminho está a ser percorrido. ●


Van Gordon, W., & Shonin, E. (2017). Mindfulness: the Art of Being Human. Mindfulness, 9(2), 664–666.

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