ou porque é que o Dalai Lama é marxista. Quando, no verão de 2012, em Minneapolis, EUA, o Dalai Lama anunciou a sua inclinação marxista, a surpresa foi isso ter sido surpreendente.
A blogosfera agitou-se uma vez mais com esta não-revelação, a qual veio à luz através de um jornalista indiano, nascido no Tibete, Tsering Namgyal, que acompanhou um encontro de cerca de três horas entre Dalai Lama e 150 estudantes chineses. Este repórter, fluente em mandarim, a viver e a estudar em Minneapolis, postou na net que o Dalai Lama tinha surpreendido a jovem audiência quando afirmou que “no que toca às minhas convicções sociopolíticas, considero-me marxista.”
O jornalista explicava no seu post que um estudante havia interrogado o Dalai Lama sobre a aparente contradição entre a sua filosofia económica e a crítica à religião de Marx. O entendimento do Dalai Lama tinha muito mais nuances do que as respostas da maioria dos bloggers que se lançaram sobre a história: o líder tibetano sugeria que Marx não era propriamente contra a religião ou a religião enquanto filosofia per si mas “contra as instituições religiosas as quais eram aliadas, ao tempo de Marx, das classes dominantes europeias” (a classe capitalista). Já no ano anterior, o Dalai Lama tinha dado uma série de palestras em Nova Iorque. Após uma conferência de imprensa no Rockefeller Center, o gabinete de imprensa do Dalai Lama produziu na sua síntese noticiosa a seguinte declaração :
“Sua Santidade afirmou, quando esteve na China em 1954-55, que o Partido Comunista da China era maravilhoso e que os membros do partido eram realmente dedicados ao serviço do povo. Sua Santidade disse estar muito impressionado e ter comunicado às autoridades chinesas sobre o seu desejo de aderir ao partido. Sua Santidade disse ainda ser marxista (n.d.a. embora alguns dos seus amigos lhe tenham pedido para não mencionar tal facto) e admirar o seu objetivo de uma distribuição igualitária (n.d.a. trata-se de ética moral). Sua Santidade, no entanto, falou das restrições existentes no seguimento da campanha “O Desabrochar de Cem Flores” (1957) na própria China para afirmar que qualquer sistema autoritário visa subjugar as forças com potencial para lhe fazer frente.”
Esta tem sido a mensagem do Dalai Lama ao longo dos anos, com declarações semelhantes em várias ocasiões e locais, incluindo uma entrevista à revista Time, em 1999, ou a seguinte passagem da sua obra “Para Além dos Dogmas”, em 1996:
“De todas as teorias económicas modernas, o sistema económico do marxismo assenta em princípios morais, enquanto que o capitalismo apenas se preocupa com a acumulação e o lucro. O marxismo importa-se com a distribuição da riqueza e com a utilização dos meios de produção em bases equitativas.
Preocupa-se, ainda, com o destino da classe trabalhadora – ou seja, da maioria – assim como dos não privilegiados e dos necessitados e com as vítimas da minoria exploradora. Por tais razões este sistema agrada-me e parece-me justo…
O falhanço do regime da União Soviética foi, quanto a mim, não o falhanço do marxismo mas o falhanço do totalitarismo. Por isso, vejo-me em mim mesmo como meio marxista, meio budista.”
Porquê, então, tanta agitação? Marx poderá ainda ser um herói inspirador para os sui generis revolucionários do Peru ou do Nepal, mas o comunismo é visto atualmente e de uma forma generalizada como um sistema falhado que desmoronou. Porquê, então, esta repetida histeria sobre Marx? E porquê agora?
Enquanto Joseph McCarthy esteve à frente da comissão de inquérito do Senado, em 1954, e foi alimentando o medo da ameaça subversiva comunista, a qual verdadeiramente nunca se materializou, o Dalai Lama estudava Marx na China de Mao. Antes desse período e com poucos conhecimentos de Marx ou do movimento comunista chinês relacionado com as teorias marxistas, também ele fora ensinado a temer “os comunistas” e seus representantes. Na já mencionada entrevista à Time, em 1999, o Dalai Lama fazia a seguinte reflexão sobre as nuances e possibilidades de um “genuíno movimento comunista” no Tibete:
“Era muito jovem quando ouvi pela primeira vez a palavra ‘comunista’. O 13º Dalai Lama tinha deixado um testemunho sobre isso a que tive acesso e, paralelamente, alguns dos monges que me ajudavam nos estudos tinham estado em mosteiros com os mongóis. Todos falavam da destruição que tinha tido lugar desde que os comunistas chegaram à Mongólia. Nada sabíamos sobre a ideologia marxista, mas todos tínhamos horror da destruição e das ideias comunistas. Só quando fui para a China em 1954-55 é que estudei, realmente, a ideologia marxista e aprendi a história da revolução chinesa. Mal entendi o marxismo, a minha atitude mudou radicalmente. Sentia-me tão atraído pelo marxismo que cheguei a exprimir a minha vontade em me tornar militante do Partido Comunista.
“À época, o Tibete era muitíssimo atrasado. A classe governante não mostrava qualquer interesse pela situação e a iniquidade grassava. O marxismo falava sobre uma distribuição igualitária e justa da riqueza. E eu estava totalmente de acordo com isso. E havia também o conceito de autocriação: o marxismo falava sobre autossuficiência, sem dependências de um criador ou de um Deus. E isso era muito atrativo. Eu tentei fazer algumas coisas pelo meu povo, mas faltou-me tempo. Ainda acho que se um genuíno movimento comunista tivesse chegado ao Tibete, teria sido altamente benéfico para o povo.”
Toda a gente parece ter uma opinião sobre Marx, comunismo e capitalismo (e, normalmente, bastante firme); porém, sempre que pude ter uma conversa mais aprofundada sobre marxismo com amigos ou alunos, todos eles genericamente admitiam o quão pouco conheciam sobre o pensamento de Marx, caindo na visão simplista de Marx ter sido um defensor do comunismo (verdade) e que o marxismo, entendido como “comunismo”, representa um modelo política e socialmente desacreditado dos Estados (não exatamente verdade). Nos casos raros de haverem lido alguma coisa do filósofo alemão, tratava-se normalmente do tratado de trinta páginas “O Manifesto Comunista”, de Marx e Engels. Atendendo à atual fase do capitalismo global talvez não fosse mau os budistas se atualizarem sobre Karl Marx.
A contribuição mais importante dada por Marx não foi o movimento revolucionário operário, mas o seu monumental estudo de dezoito anos sobre o sistema económico capitalista, publicado em três volumes entre 1867 e 1894 sob o título de Das Kapital (O Capital). Qualquer um interessado em trabalhar sobre o texto deve começar cedo – os três volumes encerram cerca de 2500 páginas. A maior parte das pessoas conhecem, ainda assim, o seu final: Marx não estava nada otimista sobre as perspectivas do capitalismo a longo prazo, embora os motivos porque chega a tais conclusões seja a razão porque académicos e escritores de todos os quadrantes têm regressado ao seu denso, difícil, lógico e imparcial análise do sistema económico dominante. O que é talvez mais surpreendente no texto é a constatação de que a fria e metódica desconstrução do capitalismo feita por Marx é totalmente livre de qualquer argumentação moral ou de apelos à consciência. E os leitores que esperam uma explicação ou uma crítica do modelo comunista que finalmente emergirá quando o capitalismo se esgotar deparar-se-ão com uma notável ausência de reflexão detalhada sobre o futuro num mundo pós-capitalismo.
Poucas coisas positivas se podem tirar da Grande Recessão e da onda de desemprego que atingiu os Estados Unidos, mas o regresso de Marx é certamente uma delas. Os marxistas começam a “sair do armário académico” em grande número e uma nova vida parece alimentar as ideias de Marx. O Capital, afinal, é um prato que se serve a frio.
Conhecer TINA
Ou foi o crítico literário e teórico marxista norte-americano Fredric Jameson ou o filósofo esloveno Slavoj Zizek (parece não haver certezas neste ponto) o primeiro a sugerir ser mais fácil às pessoas imaginarem o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Margaret Thatcher, enquanto primeira-ministra do Reino Unido, insistiu que o mundo tinha que compreender que there is no alternative (não há alternativa) – TINA, um slogan que se colou ao seu nome, embora não seja de sua autoria – ao capitalismo.
A versão corrente sobre o apagamento marxista assenta em parte no colapso repentino da União Soviética, em 1991, e nas transformações radicais da cultura económica na China. Após a queda da URSS, Margaret Thatcher declarou repetidamente o triunfo da democracia liberal e do capitalismo sobre o comunismo e o fim da histórica luta entre os dois sistemas políticos: este episódio histórico tinha acabado e o capitalismo, enquanto ‘o último homem a permanecer de pé’, era a única ideologia viável.
Mas os pronunciamentos sobre a morte do marxismo e do comunismo – e do eterno triunfo do capital – podem ter sido prematuros. Aqueles que passivamente aceitaram a declaração de Tina – Thatcher era efetivamente apelidada de “Tina” pelos seus ministros e demais membros de gabinete – não eram muito diferentes do jovem Dalai Lama antes de ter estudado o marxismo em Beijing. Hoje o Dali Lama faz uma distinção entre Marx e as formas de comunismo. Existem muitas maneiras de criticar o falhanço dos regimes da URSS e da China, mas a principal crítica marxista limita-se a observar que em nenhuma dessas situações históricas estiveram verdadeiramente reunidas as condições de uma fase do capitalismo onde uma classe burguesa tivesse estabelecido o seu poder e controlo. Alguns identificam a URSS como uma forma brutal de socialismo, enquanto ambos os Estados – China e URSS – parecem ser aquilo que Marx descreveu nos seus escritos como formas de “comunismo em bruto” . À época da ascensão de Margaret Thatcher, o mestre tibetano Chöygam Trungpa (1939-1987) escreveu o poema “Assuntos Internacionais de 1979 – Rotineiro mas Consumidor de Energia”, na linha do lamento do Dali Lama do comunismo genuíno não ter chegado ao Tibete:
Onde para o espírito do comunismo? Marx, Engels, Lenine – Se eles regressassem e vissem a confusão que arranjaram no universo ficariam horrorizados. Achamos que ninguém pratica o verdadeiro comunismo.
Tina falou antes de tempo. Não era necessária uma Grande Recessão para o mundo perceber que os problemas estruturais da economia iam ser cada vez mais evidentes: países como a Espanha têm atualmente cerca de 25% de desemprego, com o desemprego jovem acima de uns terríveis 50%. Todavia, a miséria desencadeada por este colapso é impressionante e continua a progredir. Segundo Marx, as condições para um colapso são uma precondição previsível para as crises cíclicas geradas pelo capitalismo e das quais ele depende. O que pouco importa para aqueles que são deixados para trás. Marx escreveu em O Capital (vol. 1):
“É do conhecimento geral que em todos os esquemas fraudulentos de mercado chega uma altura em que o crash é inevitável, mas todos esperam que ele caia na cabeça do vizinho, após ele próprio se ter banhado em ouro e ter colocado o lucro em segurança. Après moi le déluge! (depois de mim, o dilúvio) eis a palavra de ordem dos capitalistas e das nações capitalistas.
O capital é negligente quando se refere à saúde ou ao tempo de vida do trabalhador, a menos que ele seja obrigado ao contrário pela sociedade.”
Despertar para o capital: a insurreição budista
O que é que Karl Marx e o movimento “Occupy”,a Primavera Árabe, “Los Indignados” em Espanha, o sofrimento dos mais pobres, o desemprego, a escalada da dívida dos licenciados para pagarem os estudos, a destruição dos sistemas de saúde da classe média, o colapso do subprime, o resgate aos bancos “demasiado grandes para cair” ou as condições de trabalho na fábrica da Fox Con Apple na China têm a ver com o budismo?
Nas minhas aulas, nas conferências e nas conversas com amigos, tentamos muitas vezes imaginar o que seria um mundo sem capitalismo. Todos nós nos movimentamos num mundo de capital. O budismo também vive numa cultura de capital. O capitalismo não é apenas um sistema económico, é também a cultura dominante no mundo. A história tem mostrado inúmeros exemplos de colapsos económicos, políticos e culturais, incluindo várias sociedades que viviam em negação sobre o seu momento. Em 1932, o 13º Dalai Lama fez uma previsão política, a qual se veio a provar bastante precisa:
“No tempo presente, as cinco grandes degenerações parecem dominar inteiramente a vida na terra, ao ponto de a guerra e os conflitos se terem tornado parte daquilo que constitui a sociedade humana. Se não nos prepararmos para nos defendermos deste transbordar de violência, teremos muito poucas hipóteses de sobrevivência.
Temos, principalmente, que nos precaver dos bárbaros comunistas vermelhos que carregam com eles terror e destruição para onde quer que vão. São o pior dos males. Já delapidaram uma boa parte da Mongólia, onde proibiram a busca pela reincarnação de Jetsun Dampa, o espírito reincarnado do país. Roubaram e destruíram mosteiros, obrigando os monges a servir nos seus exércitos ou, simplesmente, mataram-nos. Têm destruído a religião por onde quer que a encontrem…
Portanto, quando o poder da paz e da felicidade está connosco, enquanto o poder para responder a esta situação ainda está nas nossas mãos, devemos fazer todos os esforços para nos colocarmos a salvo deste desastre iminente. Usai métodos pacíficos quando eles forem apropriados; mas quando não forem suficientes, não hesiteis ao recurso a meios mais efetivos. Trabalhai com empenho agora, enquanto ainda há tempo. Assim, não haverá o que lamentar mais tarde.
Os marxistas costumam brincar entre si dizendo que conseguiram acertar nas previsões de dez das últimas duas crises. Constitui, verdadeiramente, uma transição inimaginável: um mundo sem capitalismo. E, no entanto, é precisamente neste ponto que muitos intelectuais, economistas e académicos acham que estamos “à frente”.
Arautos marxistas como Eric Hobsbawm e Immanuel Wallerstein fizeram previsões sobre o fim de um capitalismo esgotado entre 15 a uns “muito desagradáveis” 40 a 50 anos. No último outono de 2012, no “Occupy Wall Street”, Slavoj Zizek realçava a natureza sistémica do declínio acentuado do capital:
“Nós aqui não estamos a destruir nada. Estamos apenas a testemunhar como o sistema se autodestrói. Todos conhecemos aquela cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira de um precipício mas continua a andar, sem perceber que não há mais chão debaixo dos seus pés; só quando olha para baixo e percebe o que está a acontecer é que cai. O que nós estamos a fazer aqui é a mesma coisa. Estamos a dizer aos tipos de Wall Street: ‘ei, olhem para baixo!’”.
Estamos a começar a viver entre dois mundos, num limbo entre culturas. Há que ter presente a necessidade de começar a pensar num mundo novo, de pensar em alternativas a este mundo ou, então, iremos muito provavelmente acabar por nos deparar com algo “muito desagradável”: uma aliança securitária de polícia, militares e serviços de segurança em proteção da riqueza de uns poucos.
A desigualdade de rendimentos e a consolidação da riqueza correspondem à consolidação do poder, constituindo uma ameaça de violência contra o povo quando este não obedece. A consolidação do poder económico apresentada pelo capitalismo não é, de todo, uma questão benigna. A “mão invisível” dos mercados não se faz sentir em benefício do povo. O capital, segundo Marx, substituiu as relações orgânicas tradicionais entre as pessoas por “interesses meramente pessoais”, através de uma “despudorada e brutal exploração”. E aqueles que executam essa exploração não parecem estar muito melhor do que os explorados. Nos anos 70, o intelectual e tradutor tibetano Lobsang Lhalungpa (1926-2008) ao passear em pleno centro financeiro de São Francisco, terá parado para observar o movimentado cenário da hora de almoço; olhando atentamente para California Street, observou: “Não vejo nenhum humano aqui”. Ao vaguear pelas ruas do centro financeiro é difícil escapar à sensação de estarmos a viver numa terra de famintos fantasmas bem vestidos.
O materialismo e a abundância do Ocidente foi, certamente, uma nova e desconhecida realidade com que se depararam os primeiros budistas enviados para estudar a nossa cultura. Agora, após 50 ou 60 anos de budismo ocidental, tem-se verificado uma tendência para trocar a crítica ao nível do materialismo para a necessidade de um budismo mais solto do – digamos – velho Tibete ou dos modelos culturais japoneses, uma forma mais simpática à sensibilidade ocidental, liberta da “carga cultural oriental”.
Mas a verdade é que o mundo está, todo ele, muito mais ocidentalizado agora que o capitalismo é global. O mundo está a fundir-se com o espírito materialista do capitalismo: a globalização não é apenas produtos, produção e consumo, é também cultural. Alguns mestres budistas que fundaram escolas no Ocidente fingem criticar alguns aspectos da cultura norte-americana, mas não passam na maior parte das vezes de meras tentativas superficiais que deixam intocáveis as raízes da omnipresente cultura materialista do capitalismo atual, enquanto adotam os fascínios tecnológicos do momento. À medida que professores e praticantes budistas escolhem entre os ensinamentos essenciais de acordo com a sua própria “bagagem cultural” – a “cega influência da cultura”, tal como colocou recentemente um professor – estarão eles conscientes da força, velocidade, caos, alienação e magia tecnológica do capitalismo atual? Estaremos nós todos cientes da força do capitalismo?
A minha imagem preferida sobre os desafios que se colocam ao budismo moderno aparece na autobiografia de Chögyam Trungpa, onde este conta uma importante lição sobre a subtil sedução do poder do materialismo que lhe foi transmitida pelo seu guru, Khenpo Gangshar. Em fuga do Tibete, a seguir à invasão chinesa nos anos 50, Trungpa estava prestes a subir para um camião – a sua primeira experiência com um veículo motorizado – quando Khenpo Gangshar o agarrou e chamou-o à atenção: “você sabe como as forças materiais são fortes; você vai ter, agora, um dos seus primeiros encontros diretos com elas. Estude aquilo que você é; não se deixe perder. Se você se deixar excitar pela viagem, nunca irá descobrir o que de facto está a enfrentar.”
A que é que nos estamos a opor? Carros e camiões já pouco representam nos dias de hoje; o fax é já uma tecnologia ultrapassada. Que apelo pode ter um camião chinês aos saltos por uma estrada de terra a 25km/h em comparação a um smartphone, à internet, ao tweet e ao consumismo da satisfação imediata? Vários professores e seguidores do budismo têm denunciado alguns aspectos de ordemcultural do budismo importado, desenterrando, simultaneamente, alguns aspectos dos ensinamentos essenciais.Mas essa mesma pergunta temos de fazer em relação à cultura ocidental se pretendemos “enxergar para além das culturas”. Em muitos aspectos é-nos mais fácil ver as componentes culturais do budismo tibetano ou japonês do que a realidade sobre o funcionamento do capitalismo americano.
O movimento real
Será o budismo irrelevante num mundo tão violento e em crise permanente? Terá ele capacidade para ser uma religião de emancipação e libertação, com o poder de transformar sociedades e culturas?
Em vários ensaios escritos por volta do ano 2000, quando o budismo na América gozava de um aparente “sucesso” generalizado – com um estatuto de celebridade para muitas das suas figuras mais representativas e uma institucionalização crescente à medida que penetrava o mainstream -, Slavoj Zizek escreveu e declarou em várias entrevistas que o budismo no Ocidente funcionava como um fetiche,no sentido em que “os fetichistas não são sonhadores perdidos no seu próprio mundo, antes são cuidadosamente ‘realistas’, capazes de aceitar as coisas como elas realmente são, uma vez que possuem os seus fetiches aos quais se podem agarrar para anular o impacto da realidade.” Por outras palavras, o mundo com o qual estamos envolvidos é cheio de injustiça, sofrimento, dor, desordem, desespero e stress, em escala variável, permitindo a orientação budista ocidental – principalmente através da prática da meditação – atenuar ou evitar o impacto pleno dessa realidade.
Para Zizek, o budismo ocidental é, em parte, coincidente com a “visão contemplativa”. Esta crítica não é, em si, original – pense-se em Nietzsche e o niilismo oriental, por exemplo -, mas as frequentes observações do filósofo esloveno sobre o assunto parece ter atingido um ponto sensível, com alguns bloggers budistas a lamentarem que Zizek não esteja suficientemente familiarizado com as fontes budistas (e que fontes serão essas?) ou reclamando do seu retrato sobre a generalidade dos budistas ocidentais como indulgentes, demandantes do prazer, distantes e altamente apáticos em relação à miséria e ao sofrimento no mundo.
Estas críticas são certamente válidas até um determinado grau, porém exprimem igualmente uma resistência que acaba por não responder à questão principal: o budismo ocidental e a sua ênfase na libertação individual acaba por alinhar, no fundamental, com o atual status quo prevalecente na sociedade. Em muitos aspetos o budismo parece mesmo funcionar como um fetiche. E quanto àqueles que chamarão a atenção para as várias formas de “budismo engajado”, poder-se-á colocar a mesma pergunta: serão esses projetos transformadores ou antes funcionam, acima de tudo, como um fetiche para manter uma imagem do próprio como um bom budista, enquanto no terreno mantém inalteráveis as condições de sofrimento e de injustiça? Na visão de Zizek, o budismo no Ocidente é o suplemento ideológico perfeito do capitalismo global.
Para que fique claro, Zizek critica a atitude do budismo ocidental não porque tenha um parti-pris de caráter teológico mas por ser intransigentemente favorável a um envolvimento realista com o mundo e as suas forças. Seguindo a sua inclinação marxista, ele argumenta que qualquer um perante tal visão realista sentir-se-á compelido a agir em vez de desistir. Zizek vê a posição meditativa e contemplativa como uma desistência. A meditação, enquanto fetiche, permite que nos afastemos – para nos distanciarmos do mundo – e assim manter a nossa sanidade. Mais, a estrutura da relação fetichista permite-nos fingir aceitar a realidade tal como ela é. Deixa-nos participar inteiramente no mundo do trabalho da cultura contemporânea – um mundo que é stressante, ganancioso, sufocante, alienado e doloroso -, ao mesmo tempo que mantemos o conceito de estarmos separados deste espetáculo, capazes de jogar o jogo segundo as nossas regras, partindo do princípio de que o importante é manter uma atitude contemplativa e distanciada de não envolvimento. O que irrita Zizek neste cenário é que esta lógica fetichista deixa o mundo tal como está, fortalecendo mesmo as ameaças hegemónicas.
Se o fetiche fosse removido, a estrutura da falsa consciência colapsaria, com efeitos devastadores sobre o sujeito. Tal como escreveu T.S. Eliot: “A humanidade não suporta demasiada realidade.”
Penso ser importante referir que Zizek e outros teóricos críticos vêm as diferenças entre o Oriente e o Ocidente a diminuírem drasticamente à medida que a Ásia tem sido absorvida pelo capitalismo global. A Ásia pode ser a origem geográfica do budismo, porém as diferenças perdem importância à medida que o mundo se torna mais moderno e ocidentalizado e a hegemonia do capitalismo global alastra a nível mundial. Assim, não é de estranhar que Zizek defenda que o budismo, no seu todo, se tenha tornado no budismo ocidental, funcionando cada vez mais como um fetiche que, em última instância, permite ao status quo manter o seu controlo, domínio e expansão.
Se o budismo representa, em última análise, a libertação da ignorância e de atos erráticos, tanto a nível individual como coletivo, então talvez fosse de estudar não apenas aquilo que somos mas também a cultura que subtilmente nos influencia e domina. Independentemente de qualquer defesa a favor de alternativas ao sistema em vigor, é possível descobrir fontes de sofrimento e novos padrões de desejo e de ignorância enraizados nas nossas ações. O estudo do capital rapidamente se tornaria o estudo do sofrimento e da falsa consciência. O estudo do capital e a consequente revelação das condições daquilo que poderíamos chamar de “comunismo emergente” poderia complementar a nossa abordagem contemplativa como o movimento real. Uma aproximação similar foi feita por Marx e Engels em A Ideologia Alemã, escrito em 1846:
“O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade (terá) de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o atual estado de coisas.”
O movimento real supera os erros e manifesta-se simultaneamente como autolibertação da sociedade.
Tenho para mim claro ser irrealista pensar que serão as sanghas a iniciar a criação de grupos de estudo de marxismo para chegarem a um entendimento do capitalismo, da miséria e do sofrimento resultante, de forma sistemática, do capital, ou do uso das suas ideias em questões de identidade, apego, subjetividade, consciencialização, materialismo, alienação e felicidade no sentido de inspirar formas alternativas de vida. Aos interessados, o semi-marxismo do Dalai Lama parece ser um bom ponto de partida – e se alguém achar as suas posições confusas ou desconcertantes eis uma boa razão para dar uma nova olhada em Marx. Porém, o apelo do capital permanece tão forte, que eu duvido que os budistas sejam de alguma forma menos seduzidos por ele do que qualquer outro grupo.
Sem lamentos
Alguns dos amigos do Dalai Lama pediram-lhe para não mencionar o facto de ser marxista. Porquê?
Independentemente da resposta, existe algo de ameaçador e de potencialmente desconfortável quando misturamos budismo com dinheiro e política. Para alguns budistas a questão é demasiado profana, para outros é indelicado: eles prefeririam não ter de (para pedir emprestada a frase de “Bartleby, o Escrivão”, de Melville). Eles prefeririam não falar sobre propriedade, iniquidade de rendimentos, pobreza estrutural, desemprego de longa duração ou de fraqueza estrutural do capital.
Há já muito tempo que Wall Street, políticos e comunicação social preferem não falar sobre estes assuntos. No entanto, essa parede parece começar a abrir brechas. Os candidatos presidenciais republicanos mostraram-se particularmente nervosos durante as primárias (de 2012), classificando qualquer discussão sobre desigualdade na distribuição da riqueza como “luta de classes”, insistindo para que o assunto fosse abandonado. O que não aconteceu. Até Warren Buffett declarou a célebre frase: “Há uma luta de classes, sim, mas é a minha classe, a classe rica, que está a fazer a guerra… e estamos a vencê-la.”
Os amigos do Dalai Lama teriam preferido que ele não o fizesse, porém, ano após ano, ele recorda-nos as suas inclinações marxistas e a sua apreensão em relação ao capitalismo. Muitos budistas parecem ter preferido não o ouvir.
Tal como o Dalai Lama, o movimento “Occupy” representa o verdadeiro espírito do escrivão melvilleano de Wall Street: inexplicavelmente, os apoiantes do movimento não só se recusam a fazer o que são mandados – abandonar o local – como continuam a chegar, para frustração não apenas de Wall Street mas também das autoridades locais e da polícia, enquanto representantes do status quo.
Americanos e budistas deveriam refletir sobre o capitalismo e como se reconciliar com os ensinamentos do Buda. Uma tarefa certamente difícil e até mesmo fortemente emocional para alguns. Tarefa que até pode parecer assustadora, o que constitui uma boa razão para encarar o assunto: porque razão é assustador refletir sobre o capitalismo? É como se o movimento ‘Occupy’ tivesse assumido o papel de psiquiatra do coletivo da sociedade: aguardando e testemunhando pacientemente as tortuosas maquinações duma sociedade que tenta finalmente reagir ao seu próprio estado de negação.
O budismo e a América devem entrar no movimento real e envolverem-se na luta para por fim ao sofrimento e à desumanidade entre os homens. O movimento real é emocionalmente forte porque o seu primeiro gesto é revelar o engano. Mas também está presente nas novas sanghas, um movimento invisível de unificação que comparece nas ações do coletivo. A ação do coletivo é para ser acolhido, para estar junto e enfrentar seja o que for que desponte dessa reunião. No declínio do capital, a energia do coletivo pode aparecer através de novas e imprevistas formas. A rebelião budista poderá parecer uma mudança para uma nova sangha sem ou com um novo tipo de liderança e ensinamento capaz de descobrir e de compreender o vasto potencial irreconhecível do movimento real coletivo.
O modo e a forma desse movimento, da nova sangha, não se processará nos mesmos moldes a que estamos habituados. Se o movimento real viver, ele deverá fugir constantemente do conhecido, das formas facilmente reproduzíveis:
“Uma revolta generalizada, tal como a vemos, deve ser nebulosa e elusiva; a resistência não se deverá nunca materializar como um corpo concreto, caso contrário o inimigo poderá dirigir as suas forças contra ele, esmagando-o e fazendo muitos prisioneiros. A acontecer tal, o povo ficará desanimado e acreditará que a questão ficou decidida e que esforços posteriores serão inúteis (…) Por outro lado, deve haver alguma concentração em determinados pontos: a neblina deve ficar mais densa e dar lugar a uma carregada e ameaçadora nuvem, da qual um relâmpago poderá irromper a qualquer momento.” (Carl von Clausewitz in Da Guerra)
Eis uma imagem da revolta budista, da sangha do futuro. A energia do relâmpago, a sinceridade da procura do real, poderá acontecer a qualquer momento e a qualquer um, e não apenas a um líder devidamente sancionado e autorizado. A nuvem carregada e ameaçadora constitui apenas uma ameaça para a velha ordem, para a ignorância e para as forças da manipulação. A energia desperta pelo raio é praticamente invisível na sua descida, tornando-se evidente no seu “curso de retorno”: o som da trovoada a ecoar pela terra. O adensar coletivo do grupo é a base do movimento real e a supressão do equívoco. A nova sangha será nebulosa e elusiva e, no entanto, aparecerá nas alturas em que o movimento real estiver particularmente concentrado no individual. Nesse momento o grupo saberá da presença do real.
O Dalai Lama lamentou não ter havido tempo suficiente para uma transição para um comunismo genuíno. Talvez seja altura para se lhe perguntar como é que é esse comunismo. Há acontecimentos em curso que assinalam, segundo alguns, o fim do capitalismo tal como o conhecemos. Vários críticos têm sugerido ser necessário começar agora a pensar sobre que alternativas queremos construir. Há que ter presente o aviso deixado por Khenpo Gangshar: estudai aquilo que sois. Não vos deixais perder. O desafio é provavelmente maior do que imaginais. Esse mesmo desafio enfrentamos hoje, até mesmo de uma forma mais intensa: temos que nos estudar a nós próprios para não nos perdermos numa rebeldia excitada de imobilismo capitalista. Tal como disse Slavoj Zizek, dirigindo-se à multidão da ‘Occupy Wall Street’: “Existe um perigo. Não se apaixonem por vocês (…) O importante é o dia seguinte, quando tivermos que voltar ao nosso dia a dia.”
Wall Street não foi feito num dia e o seu desfazer tão pouco acontecerá num dia. Mas tal como recomendou o 13º Dalai Lama no seu próprio momento de transição radical, devemos dar todo o nosso esforço “enquanto o poder para fazer algo em relação à situação ainda está nas nossas mãos (…) Trabalhai diligentemente agora enquanto há tempo. Assim, não haverá o que lamentar mais tarde.”
* O autor é professor assistente de Religiões da Ásia Meridional na Universidade de Puget Sound, em Tacoma, Washington. Tradução de Raul C. Gonçalves