Barry Boyce entrevista Jon Kabat-Zinn, um dos principais oradores da conferência “Creating a Mindful Society”, em Nova Iorque.
Por Barry Boyce
in mindful.org | 8 de setembro de 2010
O mindfulness vai além de simplesmente cultivar a nossa atenção?
O objetivo final do mindfulness é muito mais do que isso, muito mais profundo. Ele ajuda-nos a perceber que a nossa visão convencional sobre nós próprios – e até mesmo sobre o que queremos dizer com “eu” -, é incompleta nalguns aspectos muito importantes. O mindfulness ajuda-nos a reconhecer como e porquê confundimos a realidade das coisas com uma história que criamos, tornando então possível traçar um caminho para uma maior sanidade, um maior bem-estar e propósito de vida.
Por que acha a abordagem científica importante para disseminar a prática de mindfulness?
Na realidade não estou tão interessado em “espalhar” a prática de mindfulness quanto estou em inflamar a paixão das pessoas por aquilo que há de mais profundo e melhor dentro de nós, mas que normalmente permanece escondido e raramente acessível. A ciência tem um modo particular de entender o mundo, que permite que algumas pessoas tenham contacto com coisas que de outra maneira evitariam e, por isso, ela pode ser usada como um meio eficaz para abrir as mentes. Ao aproximarmos a ciência da meditação, estamos a começar a encontrar novos caminhos, numa linguagem acessível, para demonstrar os benefícios de cada um treinar e se familiarizar com o funcionamento da própria mente, de uma maneira que gere uma maior compreensão e clareza.
A ciência também tem comprovado benefícios importantes para a saúde destas práticas mente-corpo, e começa agora a esclarecer os vários caminhos pelos quais o mindfulness exerce os seus efeitos sobre o cérebro (regulação emocional, controle cognitivo, atenção, ativação de mapas somáticos específicos, espessamento cortical em regiões específicas) e sobre o corpo (redução de sintomas, maior bem-estar físico, melhoria do sistema imunitário, regulação epigenética de atividade num grande número e classe de genes). Também tem sido demonstrado que a meditação pode trazer um sentido e propósito de vida, com base na compreensão da não-separação entre “si mesmo” e “outro” . Dada a condição em que nos encontramos hoje em dia no planeta, entender a nossa interconexão não é um luxo espiritual, é um imperativo social.
Há três ou quatro séculos atrás, as pessoas praticavam a meditação sob condições razoavelmente isoladas, principalmente em mosteiros. Agora, a meditação está a ser praticada e estudada em laboratórios, hospitais e clínicas, e até mesmo em escolas primárias e secundárias. As pessoas ligadas ao ensino e à pesquisa estão, em muitos casos, envolvidos com a prática de mindfulness há 10, 20, 30 anos, ou mais. Eles não estão simplesmente a aderir a uma “nova onda”. O trabalho dessas pessoas resultou com que muitos profissionais tenham sido atraídos, pela primeira vez, para a prática da atenção plena. Isso, só por si é, um fenómeno maravilhoso, desde que se compreenda que o mindfulness não é apenas um “conceito” simpático, mas antes uma maneira de ser ortogonal, que requer prática e empenho contínuo.
Quais são algumas das novas fronteiras que o mindfulness penetrou nos últimos anos?
O mindfulness está a alargar-se a áreas para além da medicina, saúde, psicologia e neurociência. Está a estender-se a programas sobre parto e parentalidade, educação, negócios, atletismo e desporto profissional, direito, justiça criminal e até à política. Por exemplo, Tim Ryan, um deputado democrata de Ohio, tornou-se um grande defensor de políticas de maior apoio à investigação e à implementação de programas de mindfulness nas áreas da saúde e educação, com base na sua própria experiência com a prática continuada. Em áreas muito diversas, começa-se a reconhecer o quanto mente e corpo têm – e sempre tiveram – um “diálogo íntimo” entre si, pelo menos em termos biológicos. Precisamos aprender a estar muito mais sintonizados com esse diálogo e participar ativamente nele, se quisermos assegurar o seu bom funcionamento e otimizar a nossa saúde e bem-estar.
A sincronização entre mente e corpo pode trazer outros benefícios para além desse funcionamento mais eficaz?
A consciência de que estou a falar, quando usamos o termo mindfulness abrange também as motivações das nossas ações, como, por exemplo, quando somos levados por sentimentos de autoglorificação ou ganância. Na crise financeira de 2008-2009, vimos os efeitos da ganância em grande escala nos bancos e seguradoras. Curar essa doença não será apenas uma questão de resgates, pacotes de estímulo e, magicamente, criar maior confiança na economia. Precisamos criar um tipo diferente de confiança e um novo tipo de economia; uma economia que não se baseie em gastos sem sentido, mas em direcionar recursos para um bem maior: de cada ser, da sociedade e do planeta. O mindfulness pode ajudar a abrir essas portas, ajudando-nos a ir além das abordagens que se baseiam apenas no pensamento conceptual e que são movidas pela ganância sem limites e legalmente sancionada.
Parece que a ideia de que seremos capazes de encontrar uma saída para os nossos enormes problemas tem sido ensombrada recentemente.
Esse é um ponto chave. Até pessoas muito, muito inteligentes – e há um monte delas por aí – começam a reconhecer que o pensamento é apenas uma das muitas formas de inteligência. Se não reconhecermos as múltiplas dimensões da inteligência, estaremos a prejudicar a nossa capacidade de encontrar soluções criativas e saídas para problemas que não admitem correções ingénuas. É como ter uma visão linear na medicina que veja os cuidados de saúde apenas como “consertar pessoas” – um modelo de mecânico de automóveis para o corpo, que não compreende cura e transformação, que não entende o que acontece quando se harmoniza corpo e mente. O elemento que está em falta nessa compreensão mecânica é a consciência.
A consciência genuína pode modular o nosso pensamento, tornando-nos menos sujeitos às motivações impulsivas para nos colocarmos em primeiro lugar, de controlarmos as coisas para amenizar o nosso medo, de termos sempre uma resposta brilhante a oferecer. Podemos criar imensos danos, por exemplo, por não escutarmos os outros, que podem ter diferentes ideias e pontos de vista. Felizmente, temos atualmente uma grande oportunidade para equilibrar o cultivar do pensar com o cultivo da consciência. Qualquer pessoa pode repôr algum grau de equilíbrio entre o pensamento e a consciência, neste preciso momento – e que, aliás, é o único momento que qualquer um de nós tem sempre. Os resultados potenciais de aprender a habitar a consciência e trazer maior equilíbrio ao pensar são extremamente positivos e saudáveis para nós próprios e para o mundo em geral.
Por outro lado, continuar a dominar o planeta como a nossa espécie tem feito nos últimos seis ou sete mil anos poderá ser muito pouco saudável. A despeito da beleza advinda da civilização, poderemos continuar num caminho de cataclismos colossais que, basicamente, resultam de uma mente humana que não faz as pazes consigo própria – guerra, genocídio, fome, respostas totalmente inadequadas a desastres naturais. Estas convulsões podem destruir tudo o que nos é mais caro.
Falou, anteriormente, sobre o compromisso do mindfulness ser muito mais do que um mero focar da atenção. Como obtemos os efeitos mais profundos dessa prática?
Em última análise, o caminho é incerto. Tudo o que podemos fazer é escutar profundamente o chamado dos nossos corações e do mundo, e fazer o melhor que pudermos. Eu realço a universalidade do poder do mindfulness e da consciência, mas não estou a falar de uma igreja universal ou de um movimento religioso universal. Estou a falar de compreender a natureza do que significa ser humano. Eu nem gosto de usar a palavra “espiritual”.
Podemos abordar simplesmente o que significa ser humano – a partir de um ponto de vista evolutivo, de um ponto de vista histórico? O que nos está disponível neste breve momento em que o universo surge sob a forma de um corpo humano e senciente, e vive 70, 80, 90 anos (se tanto), e depois volta a nos dissolver num oceano de indiferenciado potencial? Numa grande parte do tempo tornamo-nos tão egocêntricos, tão preocupados, que não perseguimos a investigação fundamental proposta por Aristóteles quando disse: “A vida sem reflexão não merece ser vivida”.
Além de desenvolver um vocabulário não religioso universal, tentei sublinhar a importância crítica do aspecto não-dual da meditação, realçando que não se trata de chegar a qualquer outro lugar. Isto, é claro, produz imediatamente uma grande perplexidade nas pessoas, porque quase tudo o que fazemos parece ser uma tentativa de chegar a algum lugar. Por que raio é que você quer chegar a outro lugar? Se você está sob muita dor, se tem algum tipo de doença ou seja lá o que for, você está sempre a querer regressar ao ponto em que estava ou alcançar algum lugar melhor no futuro. Parece quase antiamericana a aceitação das coisas como são, mas isso é um entendimento equivocado sobre o potencial de viver o momento presente. Não é uma questão de aceitação, é uma questão de reconhecimento de que, num determinado sentido, o presente nunca fica melhor do que é.
O que quer dizer?
Muito simplesmente que o futuro não está aqui, criemos nós as ilusões que criarmos. O passado já terminou. Temos de lidar com as coisas como elas são no momento. Por isso é mais eficaz lidar com elas se não elaborarmos ilusões sobre a natureza da nossa experiência, para, em seguida, cairmos num estado de desejo e ambição que acaba por ser mais prejudicial do que benéfico.
Quando nós nos iludimos sobre a verdadeira natureza da nossa experiência, não prejudicamos apenas os outros, mas também nos prejudicamos a nós, porque estamos a afastar certos elementos que compõem o que somos da nossa ligação básica com os outros e com o nosso meio ambiente. Isto é muito triste e insatisfatório. Cura e transformação são possíveis a partir do momento em que aceitamos a realidade das coisas como elas são – boas, más ou feias – e depois agimos com base nesse entendimento com a imaginação, a bondade e a intencionalidade. Certamente que isto não é fácil ou indolor, mas é ao mesmo tempo uma forma de realização e um caminho para a paz e sabedoria.
Neste sentido, estamos a tentar criar uma forma de falar sobre mindfulness como uma prática, um modo de ser, mas também como a culminação da prática que em qualquer momento se torne tão do senso comum que as pessoas dirão: “É claro, faz todo o sentido. Faz sentido estar no momento presente, ser um pouco menos crítico ou, pelo menos, para estar ciente do quanto eu sou crítico. Como é que eu não percebi isto antes? É tão óbvio.”
Com quem podemos contar para levar esta mensagem a mais gente?
Esse é um grande desafio, considerando o quanto estamos aprisionados e cegos pelo nosso próprio condicionamento. Não existe, simplesmente, uma quantidade suficiente de grandes professores para andar por aí. Além disso, nem todos conseguem ouvir a linguagem dos veículos tradicionais de meditação. Portanto, talvez precisemos de muitos professores de meditação altamente dedicados e habilitados, mergulhados na sua própria prática, para fazer face às necessidades existentes. Há muito sofrimento no mundo. Quem somos nós para não respondermos a isso de alguma forma? É por isso que muito do nosso esforço no MBSR (Programa para Redução do Stress Baseado em Mindfulness) é dirigido à formação de profissionais, para o desenvolvimento de toda uma nova geração de pessoas profundamente embasada nessa expressão universal do Darma e comprometida em levar isso ao mundo, de várias maneiras, como um meio hábil para a cura e transformação num tempo em que o mundo clama por bondade e sabedoria.
O que é necessário para ensinar mindfulness, para além de um bom coração?
Se estamos a ensinar mindfulness, seja em que contexto for, é realmente necessário que seja baseado na nossa própria experiência, na primeira pessoa. Precisa ser fundamentada na humildade e no não-saber, uma abertura para a possibilidade, mas também numa profunda visão de si mesmo e do outro. Uma vez que está disponível a todos, não é realmente um grande negócio ou um grande bem privado.
É claro que haverá pessoas que vão tomar o mindfulness e outras práticas e colocar a sua chancela. Algumas vão fazer disso uma grande campanha, sem realmente entenderem a sua profundidade, ou tendo uma compreensão do mindfulness apenas parcial. A possibilidade inevitável de que algumas pessoas se aproximem e explorem estes ensinamentos e práticas de forma errada faz parte do preço a pagar pelo sucesso de trazer o mindfulness para um meio mais vasto.
Uma das nossas grandes responsabilidades neste trabalho é nutrir e orientar os mais jovens e aqueles que estão a começar. Podemos lembrá-los e esclarecê-los que tornar-se um professor de mindfulness não é apenas uma moda passageira ou um mero passo profissional. O valor do mindfulness é tão profundo quanto único. Chama-nos para um olhar profundo sobre a natureza da experiência em si e sobre a natureza das nossas próprias mentes e corações. Este é um tipo de investigação científica, uma vez que a mente é realmente um mistério enorme do ponto de vista científico.
Todo esse trabalho depende da apreciação de como a consciência pode equilibrar o pensamento. Não há nada de errado com o pensamento. Muito do que é belo brota do pensamento e das nossas emoções. Mas, se o nosso pensamento não for equilibrado com a consciência, podemos acabar deludidos, perpetuamente perdidos em pensamentos e fora das nossas mentes, precisamente quando mais precisamos delas.
Tradução de Raul C. Gonçalves
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