Por Joana Sampaio de Carvalho*
in Mindmatters magazine
Nesse cuidado
O interior e o exterior
Devem ser desenvolvidos em harmonia
Temos de cuidar
E educar
O que fazemos
O que dizemos
A par da purificação do coração
Ajahn Jayasaro
A escola, para além do seu papel fundamental no ensino das competências académicas (ler, matemática e ciência), constitui também um contexto crucial para reforçar o desenvolvimento positivo de crianças e jovens. No entanto, os estudos epidemológicos nacionais e internacionais revelam dados preocupantes sobre os comportamentos de saúde e a saúde mental nesta faixa etária. Neste sentido, também ao nível social e emocional a tarefa de ensinar é cada vez mais exigente para o professor. Acresce, ainda, o facto de estes percepcionarem a sua actividade como muito stressante e de um grande número de docentes se encontrar em risco de evoluir para um quadro de burnout e de abandonar a profissão. Diversos estudos revelam que o burnout nesta classe profissional pode ter consequências prejudiciais para a relação professor-aluno, a gestão e ambiente da sala de aula e a saúde individual de professores e alunos.
Face a estes desafios, como intervir para responder às necessidades dos alunos e dos seus professores? Como promover o seu bem-estar e desenvolvimento saudável?
Nos últimos 20 anos, a investigação realizada sobre o desenvolvimento de competências de aprendizagem socioemocional (ASE) nos alunos indica que a sua promoção (autoconhecimento, autogestão, consciência social, relação positiva com os outros e tomada de decisão responsável) se configura como um caminho essencial para a promoção da saúde e bem-estar dos mais jovens, estando associada ao aumento de comportamentos pró-sociais, à redução de problemas de comportamento e à melhoria dos resultados académicos, entre outros.
Recentemente, tem-se verificado um interesse crescente por uma nova abordagem educacional de promoção das competências socioemocionais dos alunos: a educação contemplativa. Esta abordagem é complementar à tradicional forma de aprender racional e sensorial, focando a aprendizagem no desenvolvimento da consciência interpessoal, na conexão autêntica com os outros e na intencionalidade das acções. Do ponto de vista pedagógico contempla um conjunto de práticas baseadas na aprendizagem experiencial, que tem como objectivo promover uma maior consciência, um sentimento mais profundo de presença e uma maior compaixão por si e pelos outros.
Uma dessas abordagens que tem sido mais estudada em contexto educacional é a baseada em mindfulness. Apesar do crescimento acentuado ao nível da investigação empírica sobre a sua utilização na educação com os alunos, os estudos indicam que os benefícios destas abordagens ainda estão numa fase muito inicial.
Para além de ensinar as cinco competências, precisamos de ter escolas seguras, cuidadoras e bem geridas. Para fazermos isto, temos necessidade não só de programas baseados em evidência científica, mas também de professores que sejam conscientes de si mesmos, das suas competências e necessidades socioemocionais, e que sejam capazes de promover de forma genuína um ambiente de ensino e aprendizagem seguro, cuidador e bem gerido, e apoiar o desenvolvimento destas competências (…), de ser o modelo destas competências (…), de encarnar (vivenciar) estas competências
(Greenberg, 2014)
Entre 2000 e 2014, dos 155 estudos realizados em contexto educacional apenas 6% tiveram um enfoque nos professores/educadores. Para além disto, os estudos realizados a nível nacional reportam que entre 45% e 63% dos professores avaliaram a sua actividade profissional como muito ou extremamente geradora de stress. Estes dois aspectos reforçam a necessidade de dar mais atenção aos adultos que trabalham em contexto educacional e que são responsáveis pela criação de um ambiente de aprendizagem favorável ao crescimento dos alunos. Neste sentido, Roser e os seus colegas propõem um modelo que enfatiza o papel da formação em mindfulness no desenvolvimento profissional dos professores. Mais especificamente, este modelo salienta que a formação em mindfulness pode promover nos professores hábitos mentais que por sua vez melhoram a sua saúde, o seu bem-estar, cultivam qualidades positivas e competências de relação consigo próprio e com os outros que podem contribuir para a melhoria das relações professor-aluno. Assim, e de uma forma geral, a intervenção baseada em mindfulness dirigida aos professores responde pelo menos a três propósitos: promover o autocuidado do professor; contribuir para que este se torne mais consciente e reflexivo; e desenvolver uma base sustentada para que ele implemente programas baseados em mindfulness para os seus alunos.
Os estudos nesta área deixam vários indicadores: um aumento nas medidas de auto-relato de mindfulness e autocompaixão, assim como de atenção, memória de trabalho e reconhecimento de emoções; o aumento nas competências de mindfulness dos professores tem efeitos na redução no seu nível de stress e burnout e melhora o seu nível de bem-estar; as abordagens baseadas em mindfulness estão associadas a qualidades importantes para o ensino, como sejam a atenção, empatia, regulação emocional e tolerância; ao nível da sala de aula, os professores disponibilizaram mais apoio emocional, mostraram-se mais sensíveis e conscientes das necessidades dos alunos e foram mais eficazes na gestão da sala de aula; finalmente, os alunos apresentaram uma redução dos comportamento desafiadores e de interacções negativas com os pares, e responderam de forma mais adequada aos pedidos dos professores.
Estes resultados sugerem que o professor é uma peça fundamental no desenvolvimento saudável das crianças. Desta forma, o foco da investigação e do trabalho futuro deverá ser no apoio ao desenvolvimento das competências socioemocionais e de mindfulness dos docentes, de forma a contribuir para o desenvolvimento de ambientes de sala de aula cuidadores.
Em Portugal, e baseado nos modelos e estudos anteriores, está a ser desenvolvido um estudo – financiado pela Fundação BIAL e promovido pela Universidade de Lisboa em parceria com o Instituto Mindfulness – sobre os efeitos de um programa baseado em mindfulness para professores: Programa Atentamente. Este programa contempla três componentes – mindfulness, auto-regulação emocional e compaixão – tem a duração de 30h e foi acreditado pelo Conselho Científico e Pedagógico de Formação Contínua de Professores (1,2 créditos). A primeira fase do estudo decorreu entre Março e Junho de 2017 e a segunda iniciar-se-á em Setembro. Nesta fase, em colaboração com alguns Centros de Formação de associação de Escolas, serão implementados três grupos de formação dirigidos aos professores do 2º e 3º ano do 1º ciclo do ensino básico. Neste estudo serão recolhidos dados em quatro momentos relativamente aos efeitos em professores e alunos e em dois momentos nas dimensões neurofisiológica dos professores e na dinâmica de sala de aula. Os resultados preliminares deste estudo indicam uma melhoria do nível de bem-estar dos professores, assim como nas suas competências de mindfulness e autocompaixão. Para além disto, ao nível das sala de aula verificou-se que os professores expressaram menos negatividade em relação aos seus alunos, promoveram mais o respeito mútuo e geriram o tempo de forma mais eficiente.
Apesar de existir alguma evidência científica que suporta os benefícios das abordagens baseadas em mindfulness para professores e alunos, os resultados devem ser lidos com precaução, por um lado porque ainda existem muitos aspectos por estudar e, por outro, devido à heterogeneidade do rigor científico dos estudos realizados. No entanto, e no que à intervenção diz respeito, estão a ser implementados diversos programas para alunos e alguns para professores, surgindo por vezes a questão: como cultivar mindfulness em contexto educacional? Nos alunos? Nos professores? Em ambos? Na escola…?
Apesar de ainda não existirem orientações específicas para intervenção em contexto educacional, pode-se a partir das guidelines definidas para implementação de outros abordagens baseadas em mindfulness e de programas de promoção de competências socioemocionais, definir algumas orientações para cultivar mindfulness em contexto educacional.
Numa reflexão recente, algumas das pessoas que têm desempenhado um papel fundamental na investigação e integração destas abordagens, salientam que, independentemente do seu contexto, as intervenções baseadas em mindfulness devem (1) ser informadas pela teoria e pela prática – tradições contemplativas, ciência, psicologia, medicina e educação, devendo assentar: no modelo da experiência humana que identifica as causas do seu sofrimento e as estratégias para o minorar; no desenvolvimento de uma relação diferente com a experiência caracterizada pela atenção no momento presente, pela descentração; no desenvolvimento da auto-regulação emocional, comportamental e atencional, e na promoção das qualidades da compaixão, sabedoria e equanimidade; e no envolvimento do participante no exercício da prática de mindfulness (sustentada e intensiva).
Quanto ao professor responsável pela implementação dos programas baseados em mindfulness, este deve ter preferencialmente competências específicas que permitam a sua implementação efectiva; ter a capacidade para incorporar (embody) as qualidades e as atitudes mindfulness durante o processo de ensino; possuir a formação adequada e o comprometimento com as orientações de boas práticas de implementação das abordagens baseadas em mindfulness (2); e participar do processo de aprendizagem com os seus alunos.
Quando se equaciona a intervenção baseada em mindfulness num contexto específico devem ainda ser tidos em consideração dois outros aspectos: os elementos essenciais do currículo são integrados com elementos adaptados e adequados a contextos e grupos específicos (ex. professores e alunos); a estrutura do programa, duração e forma de implementação são desenhados para se adequar aos grupos (ex. professores e alunos) e aos contextos (ex. escolas).
A partir das guidelines definidas para a intervenção ao nível da aprendizagem socioemocional nas escolas, e com base no modelo proposto por alguns estudos que contempla a integração da aprendizagem socioemocional com as abordagens baseadas em mindfulness, reflectimos sobre como cultivar mindfulness nos agrupamentos de escolas.
Tal como quando semeamos ou plantamos uma árvore é desejável que preparemos previamente a terra para a receber para que ela possa crescer de forma saudável, o mesmo acontece relativamente à intenção de cultivar mindfulness em contexto educacional. Assim, equacionamos duas fases de intervenção:
Fase I – A primeira fase envolve a criação de condições dentro da escola para que os alunos aprendam num ambiente mindful. Nesta fase é importante considerar os seguintes aspetos:
- Definir uma intenção que priorize a aprendizagem académica, assim como o desenvolvimento da consciência individual, consciência social (compaixão por si e pelos outros), relações saudáveis com os outros e tomada de decisão consciente e responsável. Esta intenção deve ser partilhada pelos vários agentes educativos. Na gestão da escola/agrupamento, os dirigentes escolares devem procurar incorporar (embody) e modelar o definido na intenção.
- Realizar uma avaliação de recursos e necessidades relativos à intenção definida para informar a definição de objectivos para o agrupamento/escola. Este deverá ter um plano para avaliar recursos e necessidades; recolher dados sobre os alunos e o clima de aprendizagem relacionado com as competências socioemocionais, gestão de stress, comportamento; os resultados deverão ser partilhados com os decisores de forma a que participem na definição dos objetivos para o agrupamento/escola.
- Desenhar e implementar cursos de formação contínua para professores e outros agentes educativos (ex.: gestores e auxiliares de acção educativa) para promover a capacidade interna para ensinar mindfulness e competências socioemocionais; disponibilizar apoio contínuo à implementação das abordagens baseadas em mindfulness.
- Os adultos do agrupamento/escola modelam as práticas de mindfulness em toda a escola; a direcção gere a escola de forma a reforçar as competências socioemocionais e mindfulness dos adultos; os regulamentos e as práticas da escola apoiam o desenvolvimento das competências de mindfulness e socioemocionais dos alunos; a escola comunica com as famílias e a comunidade sobre mindfulness e competências socioemocionais.
Fase II – Depois de cultivado o ambiente mindful, as fases seguintes podem integrar programas, currículos e outros exercícios específicos de mindfulness de forma a ajudar os alunos a desenvolver hábitos relacionados com a intenção, atenção e atitude:
- Adoptar e implementar programas baseados em evidência científica em todos os níveis de ensino; os professores recebem formação sobre os programas; a implementação destes respeita as normas de implementação definidas (e.g., dosagem, fidelidade, qualidade de implementação); as práticas/conceitos do programa baseado em evidência científica são integrados em toda a escola.
- Integrar abordagens baseadas em mindfulness em três níveis do funcionamento da escola: currículo e instrução, práticas e regulamentos da escola, família e parcerias comunitárias; os professores promovem abordagens baseadas em mindfulness na sala de aula; o que é aprendido na sala de aula é reforçado nos outros contextos (linguagem utilizada pelos agentes educativos, práticas utilizadas nos corredores ou recreios).
- Definir processos de avaliação que permitam a melhoria contínua da implementação das abordagens baseadas em mindfulness através do questionamento e da recolha de dados.
Estas orientações traduzem aquilo que é mais desejável que aconteça em contexto educacional e espelham um processo que leva tempo. Mesmo não sendo possível concretizar todos os passos, a intervenção deveria começar sempre com o trabalho interior de cada um consigo mesmo, ou seja, de autoconhecimento e de capacidade para gerir os seus pensamentos e emoções, para de seguida cultivar as relações com os outros e fazer crescer a capacidade pessoal de ser mindful e compassivo. Numa segunda fase, assumir a responsabilidade e agir para melhorar o contexto para os alunos, as famílias e as comunidades. Neste sentido, intervir em contexto educacional pode ser uma oportunidade para: desenvolver o nosso trabalho em conexão com a nossa intenção; cultivar presença, abertura, atenção às necessidades e características com quem vamos trabalhar; cultivar conexão com os nossos julgamentos e crenças e agir de forma mais consciente; cultivar a nossa prática e a nossa experiência e oferecê-la a quem possa estar interessado, sem imposições; cultivar compaixão para diminuir o sofrimento e cultivar o bem-estar dos professores, dos alunos e dos outros agentes educativos.
Em suma, trata-se de uma oportunidade para praticar mindfulness. E como Saki Santoreli diz: “mindfulness é um acto de amor”. ●