Por Paulo Borges
in Mindmatters magazine
Neste novo livro dedicado a Fernando Pessoa, no qual continuamos a explorar a fecundidade filosófica da sua obra e a pensar a partir dela, reunimos estudos sobre as relações explícitas e implícitas do poeta e pensador português com temas centrais da espiritualidade e da cultura orientais e ocidentais. Dotado de um espírito cosmopolita e universalista, Pessoa dialoga directa e indirectamente com as grandes questões do pensamento e da experiência humanos presentes nas tradições planetárias. Cremos ser fundamental investigar e conhecer esta menos atendida mas central dimensão da obra pessoana para uma compreensão mais ampla do seu pensamento, da sua modernidade e da sua fecunda actualidade.
No que respeita a esta, cremos que os estudos presentes neste volume mostram como Fernando Pessoa nos lega um poderoso contributo para alguns dos desafios maiores do século XXI, como o conhecimento da natureza e possibilidades profundas da consciência e o encontro e diálogo entre culturas e religiões.
O primeiro estudo consiste numa comparação sistemática entre a experiência e tema central da obra poética ortónima, a ausência ou desconstrução do eu-sujeito convencional e clássico da cultura ocidental, e a sua crítica e desconstrução budista, a partir da afirmação da impermanência, ausência de essência e carácter insatisfatório de todos os fenómenos compostos. Apontando convergências e divergências entre Pessoa e o budismo, partimos daí para reflectir sobre os motivos profundos das tensões inerentes à sua vida, pensamento e obra.
No segundo estudo procuramos, a partir da sua expressão lapidar numa passagem do Livro do Desassossego, mostrar a relação íntima entre a experiência da vacuidade ou ausência de si, muitas vezes formulada como não ser nada ou ninguém, e a ilimitada virtualidade de autocriação e multiplicação imaginativa do sujeito na experiência heteronímica. Também aqui avulta a relação implícita com o tema e questão centrais da experiência e filosofia budistas, o da vacuidade (śūnyatā), que nos permite uma vez mais, na sequência do estudo anterior, iluminar algumas das tensões pessoanas, nomeadamente a ambiguidade de uma experiência de si que parece oscilar entre o não ser nada e o ser tudo, o que nos termos do pensamento budista se diria ser uma indecisão entre o niilismo e um essencialismo totalizador ou uma mescla de ambos que, se aparta Pessoa da via do meio budista, mostra a sua singularidade e contribui para compreender o seu desassossego.
O objectivo do terceiro estudo é submeter a um exame sistemático e rigoroso o fundamento de uma tese que se tornou consensualmente dominante nos estudos pessoanos, a de Alberto Caeiro ser “um poeta Zen” ou muito afim a esta vertente budista. Partindo da compreensão do tema central da filosofia e da experiência espiritual do budismo Zen e do Mahāyāna (tradição onde o Zen se inscreve), precisamente o da vacuidade (śūnyatā), enquanto ausência de existência intrínseca de todos os fenómenos cujo reconhecimento é inseparável de um dinamismo compassivo da consciência, e confrontando-a com o estatuto ontológico das “coisas” e a ética da indiferença em Caeiro, concluímos que, apesar de algumas aparências em sentido contrário, Caeiro não pode ser de modo nenhum considerado “um poeta Zen”.
O quarto estudo opera a transição do Oriente para o Ocidente e consiste na interpretação e comentário de um poema sem título de Álvaro de Campos que consideramos um dos textos filosoficamente mais profundos e fecundos da obra pessoana. Procuramos mostrar como nele se formula poeticamente a radicalização da experiência que Platão e Aristóteles consideraram como a origem da filosofia e designaram como thaumas, o espanto ou maravilhamento, que aqui surge perante o mistério (trans-)ontológico do “haver ser” ou do “ultra-ser”. Se em Álvaro de Campos isso implica o que Leibniz e Heidegger viram como a questão central da metafísica – porque há o ser e não o nada? – , ela não se resolve ou pacifica metafísica e intelectualmente e conduz antes a uma transfiguração da percepção do mundo, de cujos momentos dialécticos e subtis estados de consciência procuramos dar conta, desde a ruptura do modo habitual de percepcionar a realidade até à sua reintegração a um nível superior.
No quinto estudo procedemos a uma interpretação e comentário detalhados da Ode Marítima, do mesmo Álvaro de Campos, como narrativa das várias fases e modalidades de uma alteração do regime dito normal de consciência (na verdade, normalizado). Tal como no poema anterior, tudo começa por uma subversão do regime de consciência habitual, sob o signo de uma saudade metafísica de cunho neoplatónico, que dá lugar a um arrebatamento extático que atinge um cume paroxístico de intensidade dionisíaco-panteísta para a partir daí haver uma reconciliação com a percepção do mundo exterior, mas a partir da irreversível transfiguração do sujeito, que do êxtase passa ao ênstase, saindo de si para regressar a si numa visão mais ampla e pacificada. Salientamos o sentido iniciático e operativo do poema, no qual surpreendemos entrecruzamentos muito sugestivos com o êxtase e desmembramento xamânico e dionisíaco, bem como com o sacrifício redentor em tradições como a budista tibetana, a judaica e a cristã. Notamos ainda uma experiência do fundo sem fundo do ser como um “vácuo”, “deserto” ou “mar nocturno” que evoca o imaginário da espiritualidade budista, taoista e da tradição renana da mística cristã. Estamos convictos de que, lida a esta luz, a Ode Marítima revela uma grande riqueza e interesse para o diálogo intercultural e para uma fenomenologia dos estados diferenciados de consciência.
O sexto estudo é um contributo para se conhecer o lugar e as várias dimensões da saudade na obra pessoana, destacando-se os aspectos em que se evidencia uma sua experiência inovadora e singular, em contraponto com outras presenças do tema na cultura e no pensamento portugueses, desde Luís de Camões e D. Francisco Manuel de Melo até Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. A maior singularidade da saudade pessoana surge enquanto visa o “que nunca houve”, onde surpreendemos uma aspiração ao que transcende todas as determinações do ser e da consciência, ao que jamais se inscreve no “haver ser” do poema de Álvaro de Campos, confirmando a jovem intuição da poesia inglesa de haver no sujeito algo radicalmente anterior a tudo, seja o mundo, seja Deus, seja ele próprio. Outra configuração inédita desta saudade “do que nunca houve” é a que se manifesta em relação às figuras da criação imaginária.
O sétimo e último estudo, conduzido pela interpretação e comentário do conciso, denso e muito rico Tratado da Negação, da autoria de Rafael Baldaia, personalidade literária pessoana, bem como de um texto afim, O Caminho da Serpente, coloca em triálogo Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa. O tema do além-Deus ou do transcender Deus, presente nesses e noutros textos pessoanos, na mesma medida em que evoca uma questão central da metafísica e mística de matriz neoplatónica, a de o absoluto ou infinito primordial ser alheio a todas as determinações e qualificações, incluindo a de “Deus” (o que move autores como Mestre Eckhart e Angelus Silesius a transcender o que na sua tradição se representa como o transcendente), convida a compreender a essa e outra luz a morte de Deus proclamada por Nietzsche como emancipação dos limites em que o humano pensa e experimenta o abismo ou vazio original. Por outro lado, o ousada afirmação da ilusão de Deus como inerente não à mente humana, mas à própria consciência divina, que se engana ao julgar existir em absoluto (no contexto da ilusão como o que preside a toda a criação e a toda a constituição do real), bem como a assunção de um não-ser não negativo nem niilista, que se identifica com a “Vida”, restabelece pontes com o Oriente por via da māyā bramânica, da vacuidade budista ou do vazio taoista, propondo uma via transversal a várias tradições e culturas para a libertação radical da consciência. Consciência que um texto afim, “O DESCONHECIDO”, considera como a única instância incriada e que por isso escapa ao domínio universal da ilusão criadora. Apontando ainda a presença de elementos neognósticos no tratado de Rafael Baldaia, cremos que este estudo fecha o livro mostrando a singularidade e fecundidade do entrecruzamento na obra pessoana de temas centrais do pensamento e cultura orientais e ocidentais.
Este livro mostra um Fernando Pessoa que transita em duplo sentido entre o Vazio e o Cais Absoluto, dois temas e imagens marcantes na sua obra e icónicos do Oriente e do Ocidente. Na verdade, um Fernando Pessoa que, bem pessoanamente, se move entre um e outro, sem jamais se fixar num ou noutro. Entre é o espaço por excelência do fluxo pessoano. Entremos nele. ●