A poluição está a invadir o cérebro

Estudo americano diz que 21% dos casos de demência são provocados pela exposição às partículas finas PM2.5
Por Virgílio Azevedo | Sven Schabbach (foto)
in Expresso
A ligação entre a poluição do ar e a demência tem sido polémica entre os cientistas, mesmo quando os seus defensores dizem que é necessária mais investigação para confirmar esta relação causal e saber precisamente como as partículas poluentes invadem o nosso cérebro e o danificam. Mas um estudo epidemiológico americano que durou 11 anos, liderado por Jiu-Chiuan Chen, da Universidade da Califórnia do Sul, conclui que viver em cidades com uma exposição às partículas poluentes PM2.5 mais elevada do que o limite-padrão definido pelas agências de proteção do ambiente —12 microgramas por metro cúbico de ar (um micrograma é um grama a dividir por um milhão) — duplica o risco de demência nas mulheres idosas. Esta descoberta, se for generalizada a toda a população da Terra, revela que a poluição do ar pode provocar 21% dos casos de demência no mundo.
Os resultados do estudo, que se apoiou também em experiências com ratos de laboratório expostos à inalação de PM2.5, foram revelados na revista científica “Translational Psychiatry” (grupo “Nature”). Até agora, já era consensual na comunidade científica o risco de se contrair a asma, o cancro de pulmão ou doenças de coração por causa da inalação de partículas poluentes finas e ultrafinas como a PM2.5, gerada pela atividade industrial e pelos combustíveis fósseis. Mas provar que a demência nos idosos e a doença de Alzheimer são provocadas pela mesma causa é um desafio mais complexo. Ana Cristina Rego, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC), aponta limitações ao trabalho feito pela equipa americana, em especial porque “continuamos sem saber qual é o mecanismo que pode levar essas partículas a entrarem no interior do nosso cérebro”. Por isso faz várias críticas ao estudo (ver entrevista).
Esta área de pesquisa “é muito, muito nova”, avisa Michelle Block, neurocientista da Universidade de Indiana (Indianapolis, EUA), citada pela revista “Science”. Mas “estamos num tempo muito estimulante para se estudarem as conexões entre a poluição e o cérebro e se estas forem reais, darão aos especialistas em saúde pública uma ferramenta para reduzirem os riscos da doença de Alzheimer, uma perspetiva bem-vinda para uma doença que é tão devastadora e que, por enquanto, não tem tratamento”.
Portugal tem 182 mil pessoas com demência
Segundo estimativas da organização Alzheimer Europe, existem 182 mil pessoas com demência em Portugal, o que corresponde a 1,71% da população, contra uma média europeia de 1,55%. Deste grupo, cerca de 130 mil são doentes de Alzheimer. Face ao envelhecimento da população da UE, prevê-se uma duplicação destes valores em 2040 na Europa Ocidental, onde Portugal se integra. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência, representando 50% a 70% dos casos. É uma doença neurodegenerativa mais frequente depois dos 65 anos de idade, caracteriza-se pela morte dos neurónios em determinadas zonas do cérebro e é fatal.
A forma familiar da doença, na qual esta é transmitida de um geração para outra, é a menos comum (1% a 5% dos casos). Segundo a organização Alzheimer Portugal, “o gene ApoE14 é o único associado a um ligeiro aumento do risco de se desenvolver a doença mas, mesmo assim, metade das pessoas portadoras deste gene, e que vivem até aos 85 anos, não desenvolvem demência nesta idade”. As causas da forma largamente dominante
da patologia, a doença de Alzheimer esporádica, são por enquanto desconhecidas. E é aqui que a investigação do possível efeito das micropartículas PM2.5 no funcionamento do cérebro pode reduzir esta ignorância.
Segundo a Agência Europeia do Ambiente (AEA), a medição das concentrações de PM2.5 nas áreas urbanas e suburbanas da UE feita no período de 2011-2013 (dados mais recentes) coloca a Bulgária na pior posição, com 30,1 microgramas por metro cúbico de ar, um valor que ultrapassa largamente o limite máximo recomendado de 12 microgramas adotado em todo o mundo. Seguem-se a Polónia, Eslováquia. Chipre, República Checa e Eslovénia, países onde o uso do carvão nas centrais térmicas, a atividade mineira, as indústrias ainda obsoletas, o parque automóvel envelhecido e a falta de eficiência energética justificam valores que podem ameaçar a saúde pública. Na melhor posição está a Finlândia (6,6 microgramas), seguida pela Suécia, Estónia e Portugal (8,9 microgramas). No entanto, não parece haver uma relação direta com a demência: na Bulgária, a percentagem da população com demência (1,49%) não é a mais elevada da UE e na Finlândia não é a mais baixa (1,71%). A AEA revela também que se verificaram mais de 400 mil mortes prematuras na UE devido à poluição do ar em 2012, das quais 5400 em Portugal provocadas pelas partículas PM2.5.
“Reconhecemos várias limitações na nossa investigação”, afirma a equipa de cientistas americanos liderada pelo físico e epidemiologista Jiu-Chiuan Chen. “Primeiro, o estudo sobre as mulheres idosas pode não ser generalizado aos homens. Depois, não tem informação sobre os materiais constituintes das partículas PM2.5, as fontes de emissão ou as interações com outros poluentes”. Por outro lado, “os modelos espaciotemporais que usámos apenas permitem estimar a exposição das populações às PM2.5 depois de 1999. Como os níveis de poluição do ar foram diminuindo nos últimos 20 anos, a exposição a longo prazo, especialmente nas pessoas jovens e de meia idade, poderá ter um risco mais elevado”.
QUATRO PERGUNTAS A
Ana Cristina Rego
Investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra
A possível relação causal entre a poluição do ar e uma parte dos casos de demência e da doença de Alzheimer tem sido polémica na comunidade científica. O estudo agora divulgado pela Universidade da Califórnia do Sul, que estabelece essa relação devido à inalação das partículas PM2.5, é mais convincente?
Os resultados do estudo são um avanço em relação a estudos anteriores, mas ficavam mais sólidos se tivessem sido usados os marcadores proteicos da doença de Alzheimer hoje aceites.
A que marcadores proteicos (proteínas) se refere?
Ao peptídio beta amiloide, que se acumula nas placas formadas no cérebro pela doença, e às proteínas tau e tau fosforilada (com adição de um fosfato). Quando a doença existe, há uma redução do beta amiloide no líquido cefalor-raquidiano do doente (líquido entre o crânio e o córtex cerebral) e um aumento da proteína tau e da sua forma fosforilada.
Isso significa que a ciência tem ainda um longo caminho a percorrer para chegar a conclusões mais sólidas sobre a possível relação entre poluição do ar e Alzheimer?
Vários estudos científicos têm mostrado algum declínio na memória em pessoas expostas a poluentes do ar em geral, mas não é fácil estabelecer correlações diretas entre as partículas PM2.5 e a doença de Alzheimer. São hipóteses que ainda terão de ser mais testadas, porque não sabemos verdadeiramente como as partículas passam para o nosso cérebro e, por isso, ainda há um longo trabalho de investigação a fazer. Os investigadores da Universidade da Califórnia do Sul não chegaram lá, porque não definiram o mecanismo que permite essa entrada no cérebro.
E quanto aos modelos usados no estudo, baseados nas alterações genéticas?
Não são os modelos mais adequados, são falíveis, porque apenas 1% a 5% dos casos de Alzheimer são formas familiares, isto é, de origem genética. A prevalência é muito baixa e as outras formas são esporádicas, o que significa que não têm uma causa conhecida.

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