Já todos passámos por situação semelhante: começamos com uma pequena mentira contada aos nossos filhos, pais, amigos, chefe… e, quando damos por isso, a coisa começa a tomar proporções, à partida, inimagináveis. De repente, perguntamo-nos: “Como é que isto chegou a este ponto?”, ao mesmo tempo que a nossa mente procura desesperadamente por uma saída airosa.
A ciência tem hoje uma explicação sobre como é que caímos no caminho traiçoeiro da inverdade. Segundo um estudo recente conduzido por Tali Sharot e equipa, da University College London, e publicado na Nature Neuroscience, quanto mais mentimos em proveito próprio, mais insensíveis ficamos às emoções negativas que lhe estão associadas e mais fácil fica contar mentiras cada vez maiores.
O que nos motiva a mentir Neste estudo, os investigadores desenharam um jogo onde foi pedido a 80 pessoas para adivinharem o montante em moedas dentro de um frasco e enviarem a estimativa a um parceiro mantido invisível. Na experiência, além de repetida várias vezes, sempre com montantes diferentes, os voluntários eram ainda informados que, por vezes, quando os seus cálculos eram sobreavaliados, ganhavam secretamente dinheiro. O dinheiro ganho por efeito da “sobreavaliação” era feito, umas vezes em prejuízo do parceiro, outras em seu benefício. Pormenor importante: o parceiro desconheceria sempre qualquer propósito desonesto envolvendo essa sobreavaliação.
O que os números deste jogo mostraram foi que trilhar ou não o caminho da deslealdade depende da mentira resultar ou não em favor pessoal. Os participantes fizeram cada vez maiores sobreavaliações ao longo das várias rondas quando isso os beneficiava em prejuízo do parceiro. Quando a mentira apenas beneficiava o parceiro, o nível das sobreavaliações manteve-se constante ao longo das várias rondas. Já quando mentir beneficiava ambas as partes foi quando os níveis de desonestidade atingiram os valores mais altos. Por outras palavras, a mentira foi escalando de ronda para ronda sempre que isso se traduzia em benefício próprio, mostrando que o simples ato de desonestidade repetida não é, por si só, suficiente para levar à sua escalada: a motivação do interesse pessoal tem também que estar presente.
O nosso cérebro mentiroso
O estudo também descobriu que há uma parte do nosso cérebro responsável por este tipo de opção. Para isso, foram realizadas ressonâncias magnéticas aos 80 voluntários durante os seus processos de estimativa. A amígdala – o centro de decisão do cérebro ligado ao processamento das emoções, associado frequentemente à resposta ‘luta ou fuga’ – mostrou os níveis mais altos de atividade aquando da primeira mentira em benefício próprio. No entanto, o nível de atividade da amígdala foi caindo a cada nova mentira. Esta diminuição permitia predizer o tamanho da próxima mentira: quanto maior a queda de atividade verificada, maior a mentira seguinte. Segundo Sharot, “uma parte do estímulo emocional detetado quando se mente, deve-se ao conflito entre como as pessoas se veem e como agem”. Mentir dispara estímulos emocionais e ativa a amígdala, mas os níveis de estímulo e de conflito vão diminuindo a cada nova mentira, tornando-a mais fácil. Tudo isto resulta numa resposta emocional mais suave à nossa decisão de mentir e a uma dessensibilização a qualquer sensação desagradável quando ponderamos o nosso “eu ideal” versus o ato de mentir.
Mindfulness e consciência emocional Como prevenir então esta insensibilidade às emoções negativas facilitadora da mentira? Conexão e consciência do nosso estado mental interior de forma intencional e sem julgamentos, é o ponto crucial da meditação mindfulness. A prática de estar presente com o nosso estado emocional, de estar plenamente atento ao teor dos nossos pensamentos e às nossas sensações físicas, leva-nos a um sentido mais apurado de consciência emocional. A partir dela, o praticante de mindfulness poderá conseguir escapar ao efeito bola de neve das pequenas mentiras que se transformam em transgressões maiores. À medida que melhoramos a nossa auto-consciência emocional através da prática de mindfulness, conseguimos combater a insensibilidade automática às emoções negativas e prevenir a mentira recorrente.
Um benefício para nós e para os outros
O estudo conduzido por Sharot é importante pela compreensão dos mecanismos do cérebro que levam o indivíduo a mentir cada vez mais quando isso se traduz numa vantagem financeira para si. No entanto, o verdadeiro significado de benefício não tem que envolver necessariamente dinheiro ou uma vantagem a nível pessoal. À medida que se vai praticando mindfulness, vamos desenvolvendo a nossa capacidade de empatia e compaixão, encurtando distâncias entre o eu e o outro. É esta crescente capacidade para empatizar com terceiros que nos fará reavaliar o efeito da nossa desonestidade sobre o outro, ajudando-nos a ser pessoas mais honestas e sinceras.mindfulness, vamos desenvolvendo a nossa capacidade de empatia e compaixão, encurtando distâncias entre o eu e o outro. É esta crescente capacidade para empatizar com terceiros que nos fará reavaliar o efeito da nossa desonestidade sobre o outro, ajudando-nos a ser pessoas mais honestas e sinceras.
Finalmente, e embora o estudo seja sobre desonestidade em relação aos outros, ser honesto connosco é igualmente importante. O ser humano não é apenas capaz de enganar o outro, também é capaz de se autoconvencer das suas próprias inverdades. A psicologia da desonestidade – seja uma criança que rouba um doce ou uma figura pública que encobre um grande esquema financeiro – decorre de um mecanismo primitivo de autopreservação, que tem tanto de mental como de físico. A proteção do ego, a necessidade da aprovação dos outros, o forte sentido de urgência para fugir às emoções negativas e desagradáveis, são tudo motivações ao autoengano. Quando ganhamos insight em relação às nossas verdadeiras motivações internas torna-se então possível evitar cair nesse terreno escorregadio da mentira, sendo o mais sensato tentar evitá-la sem nunca chegar a uma primeira vez.