A justiça à distância de uma respiração

Por Rhonda V. Magee* | Jeannie Phan (ilustração)
in ABA Journal | 1 de janeiro de 2016  ver artigo original
Parece já se ter passado uma eternidade desde os meus tempos no Sul. Uma vez, ainda criança em Kinston, na Carolina do Norte, estava na mercearia local quando um dos empregados brancos da loja viu-me levar a mão ao bolso e de imediato avançou na minha direção, agarrando-me a mão, à espera de encontrar qualquer artigo que eu tivesse roubado. Encontrou o meu lenço! Tendo sido criada num lar cristão e passado tanto tempo na companhia da minha avó – a avó Nan -, mulher profundamente crente, eu tinha perfeita consciência de não ser uma criminosa. Mas, a partir desse dia, percebi que tinha que descobrir como navegar por um mundo onde muitos me olhariam como tal – o episódio da mercearia aconteceu quando eu ainda não tinha cinco anos -: tratarem-me primeiro como criminosa e fazerem-me perguntas depois.
Esta experiência – e muitas outras que se seguiram de mensagem e efeito semelhantes -, constituiu em boa parte aquilo que me levou ao compromisso com a prática que me ajudou, não apenas a suportar diariamente este tipo de indignidade, mas, e apesar de tudo, a conseguir prosperar. Estou a referir-me à meditação mindfulness.
Antes, uma atividade meio desconhecida seguida por um pequeno número de pessoas – a turma do armário, por assim dizer -, a meditação mindfulness é normalmente apresentada como uma ferramenta de apoio para todos os que procuram progredir no mundo de forma mais harmoniosa. Hoje, os praticantes de meditação “saíram do armário” e o seu número continua a crescer.
Que tais práticas seriam benéficas num mundo muito duro não constituiu uma surpresa para mim. Cresci a ver a minha avó a preparar-se diariamente para a difícil tarefa de servir como criada numa casa de família branca, através de um compromisso seu, cumprido todas as manhãs antes do amanhecer durante uma hora, com a sua prece contemplativa e a sua devoção.
Quando, depois de terminar a faculdade de direito, descobri a meditação, comecei por vê-la como uma forma análoga de me preparar para trabalhar num mundo que não foi criado para o nosso sucesso, num esforço para levar mindfulness à minha prática de advocacia. Este compromisso continuou quando mudei da advocacia para o ensino na Faculdade de Direito da Universidade de São Francisco, onde tenho trabalhado, juntamente com muitas outras pessoas, para levar o mindfulness ao ensino e à prática do direito, no sentido do interesse da verdadeira justiça.
Durante muito tempo considerado como um conceito marginal, o mindfulness – a prática simples e no entanto profunda e muitas vezes difícil de trazer consciência ao momento presente – tem-se tornado em alguma “coisa”. Relatórios sobre os benefícios do mindfulness proliferam. E esta profusão de debates tem levado a um aprofundamento da discussão entre pesquisadores, praticantes, defensores e céticos, sobre a natureza e benefícios das práticas contemplativas.
Poucos discordariam que, se os alegados benefícios do mindfulness se confirmarem, nenhuma outra profissão como a nossa precisa mais de ser mindful. E, de facto, o direito, enquanto profissão, está a dar a sua resposta. Faculdades de direito, advogados e juízes estão em plena processo de revisão da investigação, detalhando os seus benefícios: redução do stress, redução da tensão arterial, aumento da empatia, melhor desempenho em exames e na argumentação, posições mais éticas a nível decisório, melhor e mais eficaz aconselhamento dos clientes. Além disso, pratica-se mindfulness para ajudar a lidar com o stress inerente à prática legal e para melhorar o desempenho.
Enquanto mais um a pertencer ao grupo da justiça, professores de direito e juízes trabalham em conjunto para operar estas mudanças. Admito que são mais do que um pequeno encorajamento. Enquanto a investigação sobre mindfulness não é ainda totalmente conclusiva, a sua crescente aceitação tem promovido a inovação na formação jurídica e alargado alguns dos benefícios do mindfulness a um número maior de profissionais da área. E isto é, na minha opinião, uma coisa positiva.
O que é mindfulness?
Mindfulness ou meditação mindfulness é uma das mais adotadas – e certamente uma das mais estudadas – práticas contemplativas visando uma maior consciência dos pensamentos, emoções e sensações físicas. É possível que já tenham assistido alguma vez a meditação mindfulness ou qualquer outra prática contemplativa a ser praticada por advogados, juízes, gestores e políticos durante workshops, retiros e programas CLE e CJE.
Assim, o que é exatamente mindfulness e qual a sua atração?
Investigadores do campo das ciências cognitivas (composta pela neurociência, psicologia e outros subcampos) descrevem mindfulness como prestar atenção com uma atitude de compaixão e amizade não julgadora, com a intenção de aumentar a capacidade pessoal de consciência no momento presente. Trata-se de uma abordagem global capaz de melhorar a experiência sobre qualquer atividade e reforçar uma capacidade inerente a todos. Permite ao indivíduo uma melhor concentração e uma aproximação a cada momento com um novo olhar. E, não apenas aumenta o nosso sentimento de bem-estar, como nos ajuda na escolha de respostas aos estímulos envolventes, em oposição à mera reação instintiva.
Para além dos estudos recentes indicarem alterações positivas no funcionamento do cérebro resultante da prática de mindfulness, há fortes razões para incluir esta prática na advocacia, começando nas faculdades de direito e continuando ao longo da carreira. A acrescentar à bem documentada crise de bem-estar em curso na nossa área profissional – altas taxas de depressão, suicídio e consumo de drogas – mudanças radicais internas e desafios vindos do exterior realçam a necessidade de um aumento da autoconsciência.
Embora a procura da prática de mindfulness por parte de advogados e juízes mais experientes decorra de uma procura por técnicas de gestão de stress, muitos acabam por experimentar benefícios mais profundos. Precisamos de apoio para um empenhamento mais ético, cívico e socialmente responsável. Práticas contemplativas capazes de aumentar a nossa capacidade de consciência pessoal e relacional, combinadas com uma liderança ética entre advogados, constituem portas de entrada para um maior bem-estar e eficiência, abertas a todos os que quiserem experimentar. Essas práticas poderão ajudar-nos a ser os advogados com que sonhamos e que as nossas comunidades e a sociedade, em geral, sempre desejaram.
Mais importante ainda, a prática aprofundada e continuada de mindfulness – e com o apoio de outras formas eticamente engajadas – pode ser a chave para mudar o mundo para melhor. A ciência tem vindo a descobrir que o mindfulness e outros hábitos contemplativos relacionados ajudam-nos a dar o melhor de nós, apesar dos estereótipos e de todas as formas erradas de apoio ao “sucesso” existentes, aumentando o nosso sentido de compaixão e de vontade para trabalhar para o bem comum.
Não obstante estas boas notícias, o mindfulness ainda não é para todos. E, contudo, dado os seus comprovados benefícios, valeria a pena explorá-lo. Isto é particularmente verdade dado os indicadores de que no âmago do mindfulness reside um profundo envolvimento em relação ao significado real de justiça – e como ela pode chegar mais fundo, aprofundando a ligação dos escritórios de advogados às comunidades em luta pelo país.
No apoio à justiça social
Ao apoiar um sentimento mais profundo de inter-relacionamento, o que o mindfulness está a fazer é a anunciar um novo entendimento da própria advocacia. Fortalecido pela investigação, como no caso do estudo levado a cabo pela Central Michigan University, descrita em abril de 2015 no Social Psychological and Personality Science, os programas CLE estão a explorar a ligação entre mindfulness e a redução do preconceito racial e etário implícito. Os CLE estão a ajudar advogados e líderes comunitários a aumentar o número de ferramentas à sua disposição e modos de abordagem, na procura de formas mais efetivas, produtivas e sustentáveis de resolução de conflitos.
Tudo isto bateu-me fundo no ano passado devido a dois acontecimentos relacionados com o cruzamento entre mindfulness e direito criminal. Primeiro, fui chamada pelo procurador distrital de São Francisco como consultora, numa tentativa para responder a preocupações da comunidade na sequência de novas evidências de racismo no seio da polícia.
Ao contrário da situação típica “uma salinha com uma ventoinha”, trabalhei junto do gabinete do procurador distrital para organizar “círculos de cura”, onde os cidadãos podiam partilhar as suas experiências com a polícia e expressar os seus desejos de mudança de atitude em relação à comunidade. Pouco tempo depois, partilhei esta experiência num encontro nacional sobre reformas mindful da justiça criminal, onde um vasto espectro de cidadãos tentava levar uma dimensão interior ao trabalho da sua reformulação.
Estes esforços para levar o mindfulness a lidar com os problemas internos das nossas comunidades irá, sem dúvida nenhuma, continuar. Até à data, evidências qualitativas confirmam que, e citando o imortal Sam Cooke, change ‘gon’ come.
Mudanças essas que farão, por exemplo, reduzir as probabilidades de crianças de cinco anos de idade, como foi o meu caso, serem sujeitas a perfil racial, seja em escolas ou em lojas de conveniência.
Como se processarão essas mudanças é uma questão que ainda estamos para ver.
*Rhonda V. Magee é professora de direito na Universidade de São Francisco, onde ensina delito civil, direitos raciais e advocacia contemplativa, pertence ao conselho consultivo da University of Massachusetts Center for Mindfulness e é investigadora no Mind and Life Institute.

Tradução de Raul C. Gonçalves

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