Segundo o neurocirurgião Jim Doty, ‘mindfulness’ e compaixão devem andar de mãos dadas.
Por Kira M. Newman | Arlene Dubo (ilustração) in Greater Good | 9 de junho de 2016 ver artigo original
Durante a sua fase de crescimento, Jim Doty teve tudo contra si: um pai alcoólatra, uma mãe que sofria de depressão, uma família que vivia em estado de pobreza. Mas, de alguma forma – numa viagem, como descreve no seu novo livro Into the Magic Shop – ele conseguiu superar tudo isso.
O dr. Doty é, atualmente, professor de neurocirurgia na Universidade de Stanford. É, ainda, fundador e diretor do Centro de Investigação e Educação para a Compaixão e o Altruísmo (CCARE, sigla em inglês), instituição que conta com o Dalai Lama como um dos seus fundadores beneméritos – enquanto filantropo, o líder tibetano tem doado milhões de dólares a instituições de caridade por todo o mundo no apoio aos cuidados de saúde e à educação .
O neurocirurgião atribui o seu triunfo, em parte, a uma bondosa mulher, de nome Ruth, que tomou o pequeno Doty de 12 anos debaixo da sua asa protetora. Ao longo de um memorável verão, ela ensinou-lhe técnicas de mindfulness, de visualização e de compaixão, que viriam a transformar a sua vida. Agora, através do seu novo livro e do CCARE, Doty partilha essas práticas (e a ciência por detrás delas) com todos, na esperança de que tal possa ajudar os outros a evitar os seus erros.
“Pode doer percorrer a vida de coração aberto, mas não tanto quanto percorrê-la de coração fechado”, escreve Doty.
Nesta entrevista falei com Jim Doty sobre a importância do ensinamento da compaixão juntamente com o mindfulness, a crise da compaixão no sistema de saúde e sobre o que está para vir ao nível da investigação sobre compaixão.
Na sua opinião, mindfulness sem compaixão – aquilo a que chama no seu livro “abrir o coração” – é algo problemático. Porquê? Mindfulness sem compaixão pode tornar-se uma coisa vazia. Infelizmente, aquilo que acontece com algumas pessoas é que param (no mindfulness). Para alguns tipos de indivíduos – normalmente, aqueles com personalidade tipo A -, trata-se de uma ótima técnica para se estar mais atento e focado. Mas o problema é que, a menos que se incorpore as outras técnicas que Ruth me ensinou e que agora sabemos ser de importância fundamental, a atenção plena pode ser prejudicial e transformar uma pessoa tipo A num indivíduo mais competitivo e implacável.
Outra coisa que notei, especialmente aqui em Silicon Valley, é que ela pode criar nas pessoas com personalidade tipo A um sentido de competitividade sobre o quanto elas são mindful. Ainda recentemente alguém me dizia durante uma conversa: “olhe, este já é o meu terceiro retiro de dez dias de silêncio.” (risos)
Infelizmente, mindfulness é uma outra forma que as pessoas às vezes usam para competirem e se compararem, o que, é claro, é a antítese desta prática. Se recuarmos às suas origens, o objetivo último é desenvolver menos ego e não o uso da prática para promover o ego pessoal.
Após se focar na prática do mindfulness durante tantos anos, como é que se deu conta da importância da compaixão na sua vida? Tendo vindo de um passado de pobreza e de sentimento de vazio, no início achava que o dinheiro e a aquisição de bens de consumo era aquilo que me daria mérito e valor e, ainda mais importante, controlo. Em criança, sentia-me como uma folha levada pelo vento, sem controlo. Pensava que na altura em que conseguisse ter controlo (e o dinheiro é uma forma de se conseguir controlo), as nuvens de repente desapareceriam, o sol brilharia e um grande sorriso se instalaria no meu rosto. Nada podia estar mais longe da verdade, mas demorei algum tempo até me aperceber disso.
No início, também eu procurava os mesmos objetivos que tantos perseguem – mas, no final, o que percebi foi que no pico do meu “sucesso”, nunca me tinha sentido tão vazio e infeliz. Só chegado a esse ponto consegui retroceder e processar o tempo que passei com Ruth e voltar a percorrê-lo novamente para entender, na sua totalidade, toda essa experiência. Tal permitiu-me reorientar objetivos, passando de uma atitude hipercompetitiva virada para o dinheiro e para o “sucesso” para uma visão que me perguntava quem eu era e no que acreditava – no que eu reconhecia ser verdadeiramente importante e com significado -, virado para o serviço ao outro. E, desde então, tem sido assim que tenho orientado a minha vida.
O que sabemos atualmente através da ciência é que cuidar e nutrir não é só necessário para sobreviver mas também para evoluir. Quando vivemos em coletivo, dando o nosso apoio, sendo generosos, com espírito de comunhão, o assumir do sofrimento alheio e a consequente vontade em o aliviar faz-nos mudar do modosistema nervoso simpático para o parassimpático, através do tónus do nervo vago. Quando este é estimulado, confere-nos um sentido de calma, um propósito de conexão com o coletivo, diminui a pressão arterial, melhora os níveis hormonais associados ao stress, melhora o sistema imunitário e, tudo isto, no final, está associado a um aumenta da longevidade pelo funcionamento ótimo a nível psicológico.
Como podemos encontrar um equilíbrio entre o esgotamento por compaixão e o distanciamento em relação à dor alheia? Aqueles que são marcadamente empáticos ou que são atraídos por profissões ligadas aos cuidados de terceiros, como no caso dos médicos e dos enfermeiros, têm muitas vezes problemas dessa ordem. Existe como que uma sobrecarga de sofrimento numa quantidade tal que não existe capacidade para a absorver totalmente. O mais importante, nestes casos, é reconhecer esse facto, colocar fronteiras realistas e traçar objetivos razoáveis em termos da própria capacidade de se dar aos outros.
Neste momento assistimos como que a uma epidemia de fatiga por compaixão (embora haja quem não goste do termo), de esgotamento entre prestadores de cuidados de saúde e de assistentes sociais. No CAARE, como acontece com outras organizações, temos vindo a desenvolver uma série de técnicas, no sentido de capacitar as pessoas a perceber quando estão a dar demasiado de si, permitindo-lhes dar um passo atrás, como forma de se protegerem enquanto desenvolvem o seu trabalho.
Sabemos que cada um de nós tem um determinado potencial genético: seja de inteligência, para o desporto ou para a felicidade; e o mesmo é verdade para a compaixão. Isto tem sido comprovado em termos de, por exemplo, receptores associados com a oxitocina e como isso limita a capacidade individual de compaixão, altruísmo, bondade ou de relacionamento. Mas, no geral, a maior parte das pessoas não potencializaram as suas faculdades de compaixão.
Inclui, aí, alguns profissionais de saúde? Também eles não potencializam a sua capacidade de compaixão? Infelizmente, o que se tem passado com alguns médicos deve-se ao facto deles estarem tão extenuados emocionalmente – e, também, porque toma tempo, há que admiti-lo – que eles se afastaram completamente de qualquer interação com os doentes, no sentido de estarem verdadeiramente presentes a eles. A sua ligação aos pacientes passou a ser uma presença não emocional para ouvir do que se queixam, recomendar o tratamento e… adeus e até à próxima.
Esta não é, certamente, a melhor maneira de praticar medicina. O que eu tento transmitir aos meus residentes é que o nosso sucesso, mesmo numa especialidade tecnologicamente tão avançada como a neurocirurgia, está tão dependente da bondade e da compaixão quanto da nossa habilidade técnica e cirúrgica – e acredito firmemente nisto. Qual é o quadro mais frequente com que nos deparamos quando as pessoas vêm ter connosco? Estão ansiosas e assustadas, fatores que estimulam o sistema nervoso simpático, deprime o sistema imunitário, aumento a pressão arterial, compromete a função cardíaca, resultando tudo isto na libertação dessas hormonas – oxitocina – do stress.
Quando os pacientes são tratados com bondade e compaixão, eles imediatamente passam da estimulação do seu sistema nervoso simpático para a estimulação do sistema parassimpático, o mesmo processo que descrevi anteriormente. Promove-se a regeneração das lesões e quando se reforça o sistema imunitário, diminui-se a extensão e a gravidade da doença. Se olharmos para a investigação feita sobre “ligação”, quando alguém não sente ligação com o outro (como, por exemplo, na interação médico-doente), tal tem um efeito fisiologicamente negativo.
Com o CCARE está na vanguarda da investigação sobre compaixão. Quais são, em sua opinião, as principais áreas de estudo no futuro? Existem, de facto, várias que são fascinantes. Uma prende-se com a compreensão da existência de genes que são afetados quando agimos com compaixão, muitos deles associados a inflamações. Sabemos atualmente (e todos os dias estamos a aprender mais) que a inflamação tem um enorme efeito nas doenças, sejam elas cardíacas, vascular periféricas, entre muitas outras. O trabalho de Steve Cole tem trazido conhecimento sobre como os genes e os fenómenos epigenéticos associados com o ser ou não ser compassivo são tão importantes.
Uma outra área é sobre como diferentes tipos de treino mental, práticas contemplativas ou meditação focados na compaixão podem ter efeito na saúde. Algum trabalho preliminar indica, de facto, que estas práticas podem ser tão benéficas à saúde quanto a manutenção de um peso ideal, o exercício físico regular ou o deixar de fumar – são, por isso, práticas muito poderosas.
À medida que entramos na era da inteligência artificial e da aprendizagem de máquinas, que controlam cada vez mais aquilo que se passa à nossa volta, a compaixão terá um papel ainda mais importante.
A questão que se coloca não deixa de ser interessante: temos, por um lado, a ciência da computação, muito baseada, naturalmente, na matemática; de uma forma geral, não pensamos nas pessoas ligadas a esta área como leitores de Shakespeare ou com grandes afinidades às humanidades ou ao discurso filosófico.
Mas, para a inteligência artificial funcionar no seu melhor, tem que ser imbuída de compaixão. Sabemos que enquanto espécie precisamos de nos ligar e de nos nutrir entre nós; este facto será ainda mais verdadeiro à medida que formos ficando mais ligados à aprendizagem de máquinas e à inteligência artificial.