Após a conclusão do retiro de Vancôver de 2011, duas freiras conduziram-me a uma sala de estar na residência de estudantes na University of British Columbia. Lá dentro – à excepção de um vaso de orquídeas sobre a mesa – tudo era em tons de castanho terra: Thich Nhat Hanh, nas suas vestes castanhas, bebericava uma chávena de um chá castanho dourado, enquanto outros monges de vestes castanhas sentavam num sofá e no chão castanhos. A irmã Chan Khong apresentou-me ao Thay (mestre), que, sorrindo, disse-me que eu tinha sido uma surpresa para eles. Quando solicitei esta entrevista, via e-mail, não foi entendido que “Andrea Miller” era um nome de mulher, pelo que eles assumiram que eu era um homem. Tinha-me tornado numa espécie de surpresa. No final, como em tantas alturas durante a entrevista, fui eu a parte surpreendida: sobre a vida depois da morte, sobre os prazeres de sentar, sobre ser em vez de fazer, Thich Nhat Hanh deu-me respostas de que não estava à espera. Sempre cheio de vigor, sempre sábio, eis o que Thay teve a dizer:
É muito doloroso quando alguém que amamos sofre de problemas de saúde graves, como doenças do foro mental, stress pós-traumático ou dependência de vícios. Sinto, por vezes, que os seus problemas são tão grandes que nós não os conseguimos ajudar e que isso pode nos levar a querer fugir deles e dos seus problemas. Outras vezes, tentamos ajudar e somos absorvidos nessa luta. O que é que podemos fazer para ajudar nestas situações tão difíceis sem sermos engolidos pela situação? Quando se chega ao ponto de se sentir esgotado é porque se está a colocar demasiado empenho. Esse tipo de energia não só não ajuda a outra pessoa como não é boa para si. Não se deve ser demasiado ansioso em ajudar no imediato. Existem duas coisas: ser e fazer. Não pense demasiado acerca de fazer – ser vem primeiro. Ser paz; ser alegria; ser felicidade. E, depois, fazer alegria, fazer felicidade – sempre na base do ser. Portanto, primeiro há que estar focado na prática de ser: ser vigoroso, ser pacífico, ser atento, ser generoso, ser compassivo. Trata-se do princípio básico. É como se a outra pessoa estivesse sentada aos pés de uma árvore: a árvore não faz nada, porém ela é vigorosa e viva. Quando somos como a árvore, enviando ondas de vigor, estamos a ajudar a apaziguar o sofrimento da outra pessoa. A sua presença deve ser agradável, calma e deve estar presente a ele ou a ela. Isto, por si só, já é muito. Quando as crianças gostam de se aproximar e de se sentar connosco não é porque tenhamos guloseimas para lhes dar, mas porque estar sentado ao teu lado é agradável e revigorante. Portanto, sente-se ao lado da pessoa que está em sofrimento e tente ao máximo estar no seu melhor: agradável, atenciosa, revigorante.
Se eu estiver a sentir uma emoção muito difícil, como ira ou uma profunda tristeza, o tentar focar-me na respiração não será uma forma de fugir às minhas emoções?
Normalmente, as pessoas perdem-se numa emoção muito forte e deixam-se consumir por ela. Essa não é a melhor forma de lidar com emoções, porque, quando isso acontece, você é uma vítima da emoção. Para evitar tornar-se vítima, respire e mantenha a calma, e aí irá experienciar o insight de que uma emoção é tão só uma emoção e nada mais do que isso. Este insight é muito importante, porque a partir daí vai deixar de ter medo. Está calma, não está a tentar fugir e consegue lidar melhor com as emoções. A respiração é você e você precisa de uma aliança com a sua respiração para ser mais você mesma, para ser mais forte. A partir daí vai conseguir lidar melhor com as suas emoções. Não vai tentar esquecer as suas emoções; em vez disso, vai ser mais você mesma, para conseguir uma solidez capaz para lidar com elas.
Foi emocionante ver tantas crianças no retiro…
Eu sinto-me à vontade com as crianças. Nunca me afastei das gerações mais novas. Sejam eles monásticos ou laicos, os meus canais de comunicação estão sempre ligados com as gerações mais jovens. Trata-se de um dos elementos da minha felicidade. Algumas jovens mães trazem, por vezes, os seus filhos para o salão de meditação para não perderem a palestra de Dharma. Trata-se de algo muito enriquecedor para todos. Os bebés, apesar de não saberem o que se está a passar, sentem a atmosfera de tranquilidade. Esta energia de paz, é rara encontrar na sociedade – é muito raro ter 1500 pessoas sentadas a imanar mindfulness e paz. Se oferecermos às crianças um vislumbre de paz e de amor, mesmo que elas sejam ainda muito pequenas e não conheçam a linguagem, isso não quer dizer que elas não a sintam. Tente imaginar uma jovem mãe amamentando o seu bebé durante o retiro. Ela está a ouvir o Dharma, ela está a consumir o Dharma e o bebé está a consumir, ao mesmo tempo, o leite e o Dharma. É lindo. Mais tarde, quando essas crianças se depararem com a crueldade do mundo, vão-se lembrar de que houve uma altura em que tiveram a oportunidade de encontrar a energia da paz. Quando a sangha – a comunidade budista -, se reúne para praticar, consegue sempre produzir esse tipo de energia de paz, uma atmosfera que os jovens podem experienciar, começando a plantar as sementes para o futuro. O “Budismo Engajado” (socialmente) tenta levar esta energia de paz às mais diversas situações. Em escolas, hospitais, no poder local, no poder legislativo, a prática da respiração mindful é possível.
Viver no momento presente é compatível com o usufruir dos meios de comunicação? Podemos ser mindful e, ainda assim, usufruir da internet, da televisão, do cinema e dos livros? Existem bons livros e bom cinema dos quais podemos aproveitar. É bom ter esse prazer. Mas, por vezes, a qualidade de um filme ou de um livro é bastante má e, no entanto, não nos desligamos, porque, se o fizéssemos, teríamos de recuar e sentir o sofrimento que está dentro de nós. Esta é uma prática corrente na nossa sociedade. Muita gente não consegue estar consigo mesma. Carregam dentro de si dor, tristeza, preocupação… e, então, leem, veem ou ouvem para tapar tudo isso, para fugir deles próprios. Consumir mídia assim é apenas uma forma de fuga e os seus resultados não são duradouros. É possível esquecer o nosso sofrimento durante algum tempo, mas vamos acabar por ter de voltar a nós mesmos. O Buda recomendou que não devemos tentar fugir de nós, mas, antes, aprender a tomar bem conta de nós e transformar o nosso sofrimento.
Qual seria o seu conselho a alguém que sinta a meditação sentada como algo doloroso e difícil, debatendo-se com ela?
Que não a faça.
Mesmo?
Sim, Sim. Se para si não for prazeroso sentar, não se sente. Há que aprender o espírito correto de sentar. Se estiver a fazer um esforço imenso quando se senta, vai ficar tenso, o que vai originar dores no corpo todo. Sentar deve ser agradável. Quando se liga a televisão na sala, as pessoas conseguem estar sentadas sem estarem em sofrimento. No entanto, quando se sentam para meditar, sofrem. Porquê? Porque estão em luta. Querem triunfar na meditação, por isso lutam. Quando estão a ver televisão não lutam. Têm que aprender a como sentar sem estar a lutar. Se se aprender a como sentar desta maneira, meditar sentado é muito agradável. Quando Nelson Mandela visitou a França, um jornalista perguntou-lhe o que é que ele mais gostava de fazer. Mandela respondeu-lhe que, porque estava sempre tão ocupado, aquilo que mais gostava de fazer era simplesmente sentar e não fazer nada. Porque sentar e não fazer nada é um prazer, é uma forma de você se restabelecer. Por isso, o Buda descreveu-o como sentar numa flor de lótus. Quando estamos sentados, sentimo-nos leves, vigorosos, sentimo-nos livres. E se não for isso que você sente quando se senta, então sentar passou a ser uma espécie de trabalhos pesados. Às vezes, se não dormiu o suficiente, se estiver constipado ou algo assim, sentar pode não ser tão prazeroso quanto gostaria; mas, se se estivar a sentir normal, sentir o prazer de sentar é sempre possível. O problema não é sentar ou não sentar, mas como sentar. Como sentar de forma a obter o maior proveito possível – de outra forma, é uma perda de tempo.
Você coloca muito mais ênfase na questão do prazer – prazer em respirar, em sentar, em caminhar, prazer com a vida no seu todo – do que muitos outros mestres budistas…
Nos ensinamentos do Buda, alegria e leveza são fatores de iluminação. Na vida já há imenso sofrimento. Porque é que temos de sofrer a praticar budismo? Praticamos budismo com o objetivo de sofrermos menos, certo? O Buda é uma pessoa feliz. Quando o Buda se senta, ele senta-se feliz, e quando ele caminha, caminha feliz. Porque é que eu haveria de querer fazer diferente do Buda? Talvez as pessoas tenham medo que outros digam: “você não é muito sério na sua prática. Sorri, ri, está a divertir-se. Para praticar com seriedade, há que ser muito severo, muito circunspecto.” Talvez seja esta a forma daqueles que querem obter mais donativos – dar a impressão que eles praticam de uma forma mais séria do que os outros. Atentemos na prática de sentar em vigília a noite toda: você não está autorizado a descansar e acha que isso é uma prática intensiva, mas você está em sofrimento a noite toda, bebe café para conseguir se manter acordado. É um disparate. É a qualidade do sentar que o pode ajudar a transformar, não é sentar muito e sofrer enquanto o faz. A meditação sentada ou em andamento é para ser apreciada e para aprofundar e desenvolver insight. O insight que nos pode libertar do medo, da ira e do desespero.
Pessoalmente, gostei muito da meditação em andamento que fizemos neste retiro…
Normalmente, na tradição budista, sentamos, depois levantamos e fazemos um caminhar lento no salão de meditação, e depois voltamos a sentar. Aqui não fazemos assim. Em vez disso, meditamos a caminhar no exterior. Esta prática é muito útil porque pode ser aplicada no nosso quotidiano. Você caminha numa cadência normal – não demasiado devagar -, de maneira que, para quem está de fora, você não parece estar a praticar, tudo parece perfeitamente normal; e, assim, pode-se apreciar caminhar quando se regressa a casa, quando se sai do parque de estacionamento para o escritório… O essencial da prática está em como a desfrutar: como desfrutar caminhar, sentar, tomar banho… É possível tirar prazer de tudo isto, só que a nossa sociedade está organizada em modos tais que nós não temos tempo para desfrutar. Temos que fazer tudo a correr.
Na sua opinião, o que é que faz alguém ser budista?
Uma pessoa pode não ser chamada de budista e, no entanto, ser mais budista do que outra que é assim referenciada. O budismo é feito de mindfulness, concentração e insight. Quem tiver isso é budista; quem não tiver, não é. Quando olhamos para uma pessoa e vemos que ela é mindful, compassiva, compreensiva e que tem insight, sabemos que estamos a ver um budista. No entanto, mesmo que se trate de uma freira, se ela não possuir estas energias e qualidades, ela apenas tem a aparência de uma budista, mas não tem o conteúdo de uma budista.
Pode uma cerimónia fazer de alguém budista?
Não, não é através de cerimónias que nos tornamos budistas, é através do compromisso com a prática. Os budistas deixam-se apanhar em imensos rituais e cerimónias, mas o Buda não gosta disso. Nos sutras, particularmente nos ensinamentos dados pelo Buda imediatamente a seguir à sua iluminação, ele diz que nos devemos livrar dos rituais. Ninguém consegue iluminação e libertação só porque realiza rituais, mas as pessoas têm feito do budismo algo altamente ritualista. Não somos muito simpáticos com o Buda.
É preciso acreditar na reencarnação para se ser budista?
Reencarnação significa a existência de uma alma que sai de um corpo para entrar noutro. Trata-se de uma ideia muito difundida e muito errada da noção budista de continuação. Se você achar que existe uma alma, um “eu”, que habita um corpo, e que deixa esse corpo quando este se desintegra para tomar uma nova forma, isso não é budismo. Quando olhamos para alguém, vemos cinco skandhas (agregados), ou elementos: forma, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Fora destes cinco agregados, não existe alma ou “eu”, portanto quando os cinco elementos entram em dissolução, o Karma – os atos -, que foram cometidos durante o seu período de vida é a sua continuação. Aquilo que fez e pensou ainda está presente, enquanto energia. Não é necessária uma alma, ou um “eu”, para se continuar. É como uma nuvem. Mesmo quando não está presente, ela continua sempre como neve ou chuva. A nuvem não precisa ter uma alma para ter continuidade. Não há um princípio e um fim. Não é preciso esperar até à total dissolução do corpo para ter continuidade – nós continuamos a cada momento. Suponha que eu transmito a minha energia a centenas de pessoas; a partir daí, elas continuam-me. Se você olhar para elas e me ver, então, você viu-me. Se você pensar que eu sou apenas isto (Tich Nhat Hahn aponta para si), então é porque nunca me viu. Mas quando me reconhecer nas minhas palavras e nos meus atos, você vê que eles me continuam. Quando vê os meus discípulos, os meus alunos, os meus livros e os meus amigos, você vê a minha continuidade. Eu nunca vou morrer. Haverá a dissolução do meu corpo, mas isso não significará a minha morte. Eu continuo, sempre. Esta é a verdade para todos nós. Somos mais do que o nosso corpo porque os cinco skandhas estão sempre a produzir energia. A isto se chama karma ou ação. Mas não existe um ator – o ator não é necessário -, a ação é suficiente. Isto pode ser entendido em termos de física quântica. Massa e energia, força e matéria, não são duas coisas distintas. São a mesma coisa.
O que é que podemos fazer em relação ao elevado grau de materialismo na nossa cultura?
Podemos criar um ambiente onde as pessoas vivam de forma simples e felizes e convidar os outros a virem observar. Isto é a única coisa que os irá convencer a abandonar a sua ideia materialista de felicidade. Pensam que só quando se tem muito para consumir se pode ser feliz; porém, há quem seja muito rico sem ser feliz e há os que consomem muito menos e são mais felizes. Precisamos mostrar que viver de forma simples com a prática do dharma pode ser muito gratificante, porque só quando as pessoas virem e sentirem poderão ser convencidas. Na Plum Villagepassamos o tempo todo a rir e, no entanto, nenhum de nós possui conta bancária própria, nenhum de nós tem carro particular ou telefone privado. Apenas nos alimentamos de comida vegetariana. Mas não sofremos porque não comemos ovos e carne. Na verdade, ficamos até mais felizes por saber que não comemos seres vivos e que estamos a proteger o planeta. Tudo isso traz imensa alegria. Somos afortunados por poder viver e comer desta maneira. Existe a convicção de que, a menos que se possua muito dinheiro e um alto estatuto social, não se pode ser verdadeiramente feliz. Esta é uma crença difícil de largar até ao dia em que nos deparamos com a evidência de que há uma outra forma de alcançar a felicidade. Ver isso tornará o futuro possível para os nossos filhos. Portanto, penso que nos círculos budistas temos que nos reorganizar no sentido de conseguir mostrar às pessoas formas de viver feliz baseadas, não no materialismo, mas na compreensão mútua. Palestras de dharma, por si só, não é suficiente, porque se trata apenas de palavras. Só quando as pessoas virem estas comunidades não materialistas, quando observarem este tipo de vida, poderão ser convencidas.