A delusão da ciência

Entrevista com o ensaísta norte-americano Curtis White
Por Linda Heuman
in Tricycle magazine | Spring 2014  Ver artigo original
Curtis White não é de meias palavras. Para aqueles que vêm no budismo pouco espaço para um debate aceso, a franqueza direta do escritor norte-americano pode parecer inusitada ou até mesmo chocante. Mas para White – professor emérito de inglês na Illinois State University, novelista e autor de vários trabalhos de crítica social, como o bestseller de 2003 “The Middle Mind: Why Americans Don’t Think for Themselves” -, há demasiado em jogo no atual clima intelectual para adocicar este debate.
O mais recente livro de Curtis White, “The Science Delusion: Asking the Big Questions in a Culture of Easy Answers” (A Delusão da Ciência: A Grande Questão numa Cultura de Respostas Fáceis), lança-se sobre um oponente ágil, frequentemente presente, porém tão esquivo que constantemente parece escapar do nosso radar: o cientificismo. White classifica o cientificismo como um triunfalismo injustificado baseado em premissas não comprovadas – tais como a reivindicação de que a ciência tem resposta para tudo (ou terá em breve), de que a resposta para todos os problemas humanos reside na descoberta de leis naturais ou que a submissão à perspectiva científica é um imperativo sem escolha ditado por factos objetivos. Para White, esta posição não constitui apenas um equívoco, ela é perigosa e geradora de prejuízos a nível social, cultural e político.
“The Science Delusion” aponta para dois alvos: cientistas e escritores científicos que se auto proclamam “inimigos da religião” e a alguns neurocientistas e líderes de opinião na imprensa generalista cujo “neuro-entusiasmo” – segundo White – manipula os factos. O que estes partidários da ciência têm em comum, diz White, é, em ambos os casos, a promoção ideológica do ponto de vista do cientificismo internacional como o único entendimento válido do fenómeno humano e também um conjunto de premissas, “muitas delas dúbias, quando não mesmo puramente enganosas”, acusa White. Mas para o ensaísta, o debate sobre créditos do conhecimento é uma luta secundária. Há uma batalha mais importante a travar, facto que ele deixa bem claro quando pergunta: “No interesse de quem escrevem estes populistas e provocadores da ciência? E com que fins?”
Curtis White escreve numa altura em que as disciplinas de artes e humanidades debatem-se pela sobrevivência nas universidades um pouco por toda a América, cada vez mais eclipsadas pelas disciplinas “STEM” (ciências, tecnologia, engenharia e matemática). Segundo White, estamos a assistir a um controlo, por parte da ciência, das múltiplas narrativas sobre o significado do que é ser humano – narrativas que floresceram na história Ocidental através da religião, da arte, da literatura e da filosofia. O cientificismo apresenta-se com um discurso próprio, o qual White descreve da seguinte forma: “Nós não somos ‘livres’; somos expressões químicas do nosso ADN e dos nossos neurónios. Não podemos ansiar a nada, porque é o nosso cérebro quem atua por nós. Somos comparáveis a computadores ou a sistemas, tal como acontece com a natureza”. Quando acreditamos ser isto, tornamo-nos parte de uma engrenagem facilmente manipulável por forças sociais. Segundo White, uma vez a nossa história reescrita pelo cientificismo no sentido de que os valores a que a humanidade mais tem valorizado – como o amor, a surpresa, a presença, o brincar – são reduzidos a átomos, genes e neurónios, a vida humana torna-se presa fácil de interesses políticos e corporativos. Tornamo-nos “meras funções num sistema”. O que Curtis White visa é que acordemos para o facto de que estamos perante, não de uma descoberta científica, mas de uma questão ideológica. Confundir uma coisa com a outra tem profundas consequências, “não apenas em relação ao conhecimento, mas, principalmente, à maneira como vivemos.”
Os budistas Ocidentais, envolvidos na adaptação de uma tradição religiosa asiática, estão na generalidade de acordo sobre a importância de se perceber como o budismo tem sido modelado pela sua cultura-mãe da Ásia. Porém, fazer brilhar esta luz de conhecimento sobre nós próprios é uma proposta muito mais difícil. É penoso verificar o tipo de pressupostos que estamos a aportar ao projeto, precisamente porque são pressupostos nossos, não são de mais ninguém. Ao atacar duramente algumas das nossas deduções mais enraizadas, White chama a nossa atenção para o assunto. A questão aqui não é saber se estamos ou não de acordo com as suas críticas. White não anda à procura de améns. O que ele pretende é desafiar a nossa complacência e, ao fazê-lo, alterar os nossos parâmetros que determinam o nosso acordo ou desacordo.
O seu último livro chama-se “The Science Delusion” (A Delusão da Ciência), o que constitui claramente uma resposta ao título do livro de Richard Dawkins “The God Delusion” (A Delusão de Deus). Qual é a delusão da ciência e quais são as suas implicações no sentido de uma vida com significado espiritual?
Não existe uma delusão singular da ciência. Um dos maiores desafios em escrever um livro que tenta questionar o papel que a ciência desempenha na nossa cultura está bem à vista. Portanto, o título é uma provocação, embora seja uma provocação séria.
Aquilo que eu critico é a ciência enquanto ideologia, ou, para abreviar, o cientificismo. O problema com o cientificismo é ele tentar reduzir qualquer questão humana aos seus próprios termos. Assim, a criatividade artística é meramente uma função de neurónios e químicas, a religião é o resultado do Deus gene e a fé está conectada à nossa formação genética.
Não é portanto surpreendente que a palavra “espírito” seja um termo proibido. Os escritores científicos tendem a reduzir os crentes a fundamentalistas e a história da religião a uma série de historietas de índole criminal. Richard Dawkins tem – e Christopher Hitchens teve -, particulares responsabilidades nesta questão. Qualquer alusão quanto ao significado de espírito é deixado de fora. No entanto é claro que a história do pensamento religioso é cheia de subtilezas, como qualquer pessoa familiarizada com a filosofia budista bem sabe. Um outro exemplo prende-se com o legado do existencialismo cristão, a começar por Kierkegaard: para mim, é vergonhosamente desonesto não reconhecer um trabalho de tal envergadura.
Tanto o cientificismo como o fundamentalismo religioso procuram responder à necessidade humana de segurança num mundo plural cada vez mais instável e desconcertante. Até que ponto é que eles são parte do mesmo negócio?
Tal como a sua pergunta sugere, o drama da confrontação entre fundamentalismo religioso e cientificismo é a luta entre campos que têm mais em comum do que eles próprios querem admitir. Ambos os lados tentam limitar e estreitar em vez de abrir. A ciência tende a ser vulnerável ao síndrome de “assunto encerrado”. Os cientistas valorizam a curiosidade e a abertura de espírito, mas muitas vezes mostram-se insensíveis quanto a formas alternativas de ver o mundo. É-lhes particularmente difícil colocarem-se à margem do seu próprio mundo. Este problema é provavelmente fruto da forma como educamos os nossos cientistas. Pessoalmente, parece-me que os cientistas precisam adquirir mais conhecimento em história e sobre a história das ideias, principalmente figuras proeminentes como Stephen Hawkins, para não fazerem afirmações do tipo “a filosofia está morta”.
Existe um pressuposto vulgarmente aceite de que a ciência não é uma forma de ver o mundo mas simplesmente uma visão de “como as coisas são”. Juntamente com este pressuposto, existe um outro: a autoridade da ciência decorre do seu acesso privilegiado a “como as coisas são”, ideia alicerçada na sua genuinidade.
O que é estranho neste caso é que é a própria ciência quem nos diz não ter um acesso privilegiado à realidade das coisas; o paradoxo filosófico em relação às suas descobertas, principalmente na física, são um reconhecimento claro das suas muitas incertezas.
O que temos perante nós é uma mistura entre um pressuposto ideológico – de que a ciência é baseada em factos – e o trabalho científico em curso, algo que é altamente especulativo e cuja realidade é, frequentemente, meramente matemática. A física, por exemplo, depende muitíssimo de modelos matemáticos, mas ninguém sabe explicar porque é que a matemática é assim tão reveladora da realidade. Tal como os físicos Tony Rothman e George Sudarshan realçaram em “Doubt and Certainty” (Dúvida e Certeza), a equação matemática do modelo Black-Scholes usado pelos corretores dos mercados de ações é idêntico ao da equação que demonstra como se movimenta uma partícula num meio líquido ou gasoso. Mas, tal como observaram de forma lacónica, no mundo real existe uma grande diferença entre subida e descida de ações e movimento de partículas.
Até mesmo algo tão familiar como as equações de Newton são concepções matemáticas e, tal como foi demonstrado por Einstein, elas são inadequadas em pontos importantes. E se as previsões de Newton sobre o movimento de objetos com a dimensão de corpos celestes são concepções, o que se poderá dizer então em relação à teoria das cordas: quanta, cordas, p-branas e suas ligações? Estas teorias são apenas números, não têm qualquer presença empírica.
A maioria dos budistas teria pouco a opôr à declaração presente em “The Science Delusion” de que “o mundo é uma mistura do que descobrimos e do que inventamos.” Em que é que esta declaração contraria o cientificismo? Mesmo agora, depois de Heisenberg, depois da física quântica, muito do discurso da ciência nas suas proclamações públicas é focado no princípio do conhecimento como um facto, o que omite o carácter paradoxal da confirmação científica. Significa “confirmação” o conhecimento positivo da realidade? Significa probabilidade? Significa que há alguma coisa útil? As equações de Newton nunca deixaram de ser úteis, mesmo quando foram ultrapassadas pela teoria geral da relatividade.
O cientificismo é inflexível em relação à ideia da existência de um universo dependente da participação da mente. A Revolução Copernicana, de Emmanuel Kant, tratava deste simples facto: nós não possuímos um acesso simples “à coisa em si”. Qualquer conhecimento que possamos ter sobre a realidade é necessariamente mediada pelas nossas próprias estruturas simbólicas, sejam elas matemática, filosofia, religião ou arte. Até mesmo John Archibald Wheeler, teórico da física, foi capaz de afirmar de forma convicta: “o universo não existe ‘lá fora’ de forma independente de nós. Estamos inevitavelmente envolvidos em dar o nosso contributo, o que parece estar a acontecer.” No entanto, aquilo que ouvimos mais frequentemente por parte do cientificismo é: “nós cientistas trabalhamos no conhecimento da verdade, ao contrário de filósofos, artistas e crentes.” Fim de conversa.
Muitos assumem que a lógica e a razão afastam-nos da religião. De que forma o estudo sistemático da literatura e da arte afirmam a religião?
A nossa cultura assume genericamente que toda a razão é uma razão empírica: um desenvolvimento lógico procede de um facto empírico. De forma similar, temos tendência a assumir que o espírito diz respeito a questões do sobrenatural. Mas esta não é a única forma de entender a razão ou o espírito. A essência da lógica espiritual do budismo encontra-se nas Quatro Nobres Verdades. Há o sofrimento, a maior parte dele resultante do desejo pessoal desencadeado pela delusão. Este sofrimento pode ser parado. O Caminho Óctuplo revela como o sofrimento pode ter um fim. Não se trata de um apelo ao sobrenatural, embora seja certamente um apelo ao espírito.
A questão religiosa definitiva, o mistério religioso último, não é se existe ou não um Deus. Pessoalmente, vejo-me como um ateu, porque considero esta questão uma tolice, uma infantilidade, uma irrelevância. A grande questão religiosa é “o que é compaixão?” ou como dizem os cristãos “o que é amor?” A compaixão não é uma qualidade que possa ser demonstrada empiricamente. Não é uma coisa. É algo que usamos de forma dinâmica. Refere-se a uma qualidade que nos é muita cara: premência de bondade. A compaixão apenas existe na medida em que nela investimos com a energia da nossa própria vida – ora bolas para o “gene do altruísmo”.
Este tipo de “teo-lógica” está presente também no Ocidente. Se existe um princípio de Deus no existencialismo cristão, ele reside na fé do valor supremo da compaixão. O teólogo protestante Paul Tillich defende que Deus é o objeto da nossa “consideração final.” Quando somos chamados por este tipo de questões, abrimo-nos à nossa verdadeira natureza.
E a arte, desde o romantismo, participa numa lógica semelhante. É claro que o pressuposto generalizado é de que a arte é apenas imaginação, entretenimento ou uma perda de tempo. O meu ponto é: a arte pensa; e a história da arte dos últimos dois séculos mostra que a arte pensa de forma muito peculiar. A arte possui uma lógica espiritual própria. Ela pergunta: como é que vamos transcender aquilo que Friedrich Schiller chamou de “a miséria da cultura”, referindo-se à cultura industrial onde o homem “não é nada mais do que um fragmento”? Para Schiller e para os românticos, os múltiplos caminhos da arte são uma forma de alcançar a transcendência deste sofrimento. Tal como Pablo Picasso escreveu, “a pintura não foi feita para decorar apartamentos. É uma arma de guerra, ofensiva e defensiva, contra o inimigo.” Tal como mostra o “Guernica” de Picasso ou “O 3 de Maio de 1808” de Goya, o “inimigo” é a crueldade.
Ora, em qualquer destes contextos, trata-se de uma lógica perversa. Se tivéssemos de julgar a situação empiricamente, fica difícil imaginar que alguém possa não concluir que “o peso das evidências” – como os advogados gostam de dizer -, apontam para a ideia de que, como diz O’Brien em “1984” de George Orwell, o futuro é “uma bota estampada no rosto humano – para sempre.” Porém, o budismo chega a uma conclusão oposta. O nosso sofrimento não espelha quem nós somos – violentos devido à “natureza humana” – mas do facto de estarmos deludidos, de não nos conhecermos; e se quisermos colocar um fim ao sofrimento temos, como disse Nietzsche, “de nos tornarmos naquilo que somos de verdade”. É a perversidade desta lógica que faz dela espiritual porque nada existe no terreno que a suporte. É como a estória do judeu que diz ao seu vizinho cristão que vai a Roma para verificar como é de facto o cristianismo. O vizinho, naturalmente, fica com medo que uma vez vista toda a corrupção existente, o homem não se converta. Porém, quando ele volta, diz-lhe: “Ah! meu amigo, sem dúvida que a tua fé é a maior de todas, senão ela não conseguiria sobreviver a tanta crueldade e hipocrisia.”
A questão fundamental a ter em conta nesta reflexão é de que se trata de uma forma de razão espiritual baseada no realismo: a nossa experiência de como são as coisas no mundo humano. É verdade de que não se trata de uma razão empírica motivada por uma noção objetiva do mundo, mas tão pouco são as suas conclusões dependentes de um supranaturalismo ou de um pensamento mágico. A ideia de que todas as razões do ser humano têm de ser necessariamente empíricas é uma estória que nos é contada pelos nossos senhores.
Quando os críticos falam do cientificismo como ideologia, muitos parecem ter em mente a ideologia como um conjunto de crenças – como propostas que guardamos na cabeça. Ao ler o seu livro fiquei com um sentimento de que ideologia, particularmente no cientificismo, tem raízes muito mais profundas do que isso.
Eu uso o termo ideologia no sentido utilizado por Karl Marx: as histórias e as ideias que vivemos enquanto membros de uma determinada cultura. Escusado será dizer que existe uma acepção neutra de que todas as culturas têm de ter ideologia. O sentido pejorativo do termo resulta da ideia de que as estruturas de poder e de privilégio podem e conseguem manipular e impor esse discurso no sentido de suportar os seus interesses. A questão deixa de ser sobre “qual é a melhor maneira para vivermos todos juntos?” para passar a ser “que estória suporta melhor os nossos interesses?” Passar um discurso onde se pretende que todos se revejam nele, mas que na realidade apenas favorece um grupo, requer desonestidade. Portanto, a minha preocupação é identificar esses desonestos ou falsos elementos através de uma ideologia que nos é fornecida pela ciência e seus patronos.
É claro que o primeiro discurso ideológico da ciência é que ela não tem qualquer relação com a ideologia. Porém, todas as ideologias dizem o mesmo. A ciência diz que “estamos apenas preocupados em saber como as coisas são na realidade.” A ciência da economia diz-nos que o interesse individual é algo de racional, que constitui a essência da liberdade e que até pode estar no nosso código genético. Trata-se de ficção para encobrir tremendas destruições e crueldades. Tal como argumenta o budismo, estas não são ideias úteis, são  delusões, e causam grande mal.
A reivindicação por parte da neurociência de ser capaz de entender a meditação em termos da mecânica dos neurónios e da química é mais um exemplo de narrativa ideológica. Podemos ter o budismo, discorre o discurso, desde que estejamos dispostos a reconhecer de que ele pode ser melhor entendido através da neurociência. O budismo é perigoso se não for feito para confirmar os nossos pressupostos culturais empiristas. Se o budismo se recusar a confirmar tais pressupostos, então trata-se de uma contracultura e, portanto, uma ameaça à estabilidade do status quo. A minha opinião é de que se nós, no Ocidente, estamos fadados a perceber mal o budismo da Ásia, então que seja uma má interpretação criativa do espírito do budismo e não meramente uma mera repetição de uma familiar e opressiva ideologia.
Escreveu que nós não temos apenas tecnologia temos também tecnocracia, a qual é dominada por corporações, militares e políticos interesseiros. Do seu ponto de vista existe uma urgência moral perante tal situação, onde muitos, incluindo muitos budistas, têm uma visão mais otimista.
É um erro pensar que todos estes brinquedos e gadgets são um mero acaso, sem tentar compreender como tudo isto está relacionado com uma cultura, no seu sentido mais amplo. Um dos livros que mais me tocou profundamente enquanto teoria política foi “The Making of a Counter Culture” de Theodore Roszak. Voltei a lê-lo recentemente e continua perfeitamente atual. Roszak escreveu: “Por tecnocracia refiro-me a uma forma de desenvolvimento social onde uma sociedade industrializada atinge o cume da sua integração organizacional.” Theodor Adorno chamou-lhe “sociedade administrada”. A sociedade administrada é aquela onde a racionalidade tecnológica e a organização industrial penetraram fundo em todos os aspectos da forma como vivemos.
Por exemplo: ao trazermos computadores pessoais para dentro de casa, trouxemos igualmente os nossos postos de trabalho para o interior dos nossos lares. Desta forma, quem pode dizer quantas horas por semana trabalhamos? De certa modo, muitos trabalhadores nunca deixam de estar no trabalho, uma vez que eles passaram a carregar os seus empregos no bolso. Ou, então, atentemos aos trabalhadores de serviços na indústria alimentar: estas pessoas são tratadas não como seres humanos mas como uma engrenagem de uma máquina extremamente eficiente, sendo as competências que lhes são requeridas meramente mecânicas.
Quanto mais tudo isto se tornar padrão, maior é a opressão – e, desnecessário será dizer, perversamente bem-sucedida. O resultado é uma cultura “resultadista”. Todos os aspetos da cultura são feitos em conformidade com um determinado ideal tecnocrático e mecanicista. Eis as razões porque afirmo que o cientificismo é uma parte tão importante da ideologia do Estado. Trabalha para o patrão.
Como?
Ao padronizar, simplesmente, a ideia de que tudo é uma máquina, especialmente nós. Não é provável aparecer uma crítica social thoreauviana ou budista sobre tecnocracia se tivermos sido convencidos de que somos computadores. O pensamento de Henry David Thoreau é perturbador e desobediente, pelo que a tecnocracia prefere que nós não pensemos dessa maneira. No final, estamos a discutir o significado do que é ser humano.
Neste momento, a ideia de que somos computadores com neurónios está em plena ascensão. Atualmente, a partir de muito cedo, é colocado às nossas crianças a necessidade delas entenderem de que se quiserem um padrão decente de vida, vão ter de estar em paz (idealmente, em paz entusiástica) com a ciência, a tecnologia, a engenharia e a matemática, ou STEM. As universidades enveredaram agora no negócio de treinar pessoas para um mundo que é tido como um enorme mecanismo – e isto inclui a natureza, ou como dizemos agora o “ecossistema”. Mas tudo está certo porque também nós somos computadores. Nunca é demais enfatizar o quão opressivo é tudo isto para muitos jovens. Tal como um crítico do meu livro escreveu, de forma bastante amarga, “qualquer um que não deseje ser um designer gráfico, um tecnólogo ou um escravo devoto da Apple: não há empregos à tua espera!” E, acrescento eu, nem terás como pagar os valores exorbitantes dos empréstimos para estudar.
Alguém que tenha dúvidas sobre a importância desta visão deve ler a coluna de David Brooks no New York Times de dezembro de 2013 com o título “Thinking for the Future”, onde ele prevê que a economia do futuro irá depender da “inteligência mecanizada.” Quinze por cento da população mundial vai constituir uma casta de nerds da informática enquanto os “85% inferiores” estarão ao seu serviço como recepcionistas ou fazendo trabalhos do tipo gerir uma rulote de “comes e bebes”. E, no entanto, Brooks afirma que esta vasta classe de servos terá “uma rica vida” que lhes será providenciada pelos “reis da internet.”
No seu artigo thoreauviano “The Spirit of Disobedience: An Invitation to Resistance” (O espírito da desobediência: um convite à resistência) citou Simone Weil: “Os valores autênticos e puros – verdade, beleza e bondade – na atividade do ser humano são resultado de um mesmo ato, uma certa aplicação da atenção plena sobre o objeto.” À luz desta perspectiva, o que é que pensa sobre a introdução da meditação no ensino e na indústria, principalmente na “indústria criativa” de Silicon Valley?
Thoreau e Weil foram escritores oriundos da tradição romântica. Na minha opinião, o movimento romântico foi uma tentativa para criar uma literatura de sabedoria no Ocidente. Uma boa parte desse saber tinha a ver com um regresso à urgência do mundo. Como técnica poética tornou-se conhecida como “desfamiliarização”. Aquilo que tenta fazer é destruir o mundo dos seus costumes, hábitos, estereótipos e ideologia para que possamos ver as coisas pelo que elas são, permitindo-nos sentir o carácter “pedregoso da pedra”. Quando Walt Whitman diz que a sua poesia é sobre “folhas de erva”, o que ele está a dizer essencialmente é que não temos estado atentos. Precisamos voltar a olhar estas folhas de erva. Whitman escreveu: “Tragam toda a arte e ciência do mundo e abafem-nas e façam-nas humildes com uma haste de erva.”
A coisa mais triste que podemos dizer sobre a nossa cultura é que se trata de uma cultura de distração. O “défice de atenção” é uma disfunção cultural, uma degradação do espírito, antes de se tornar numa doença dos nossos filhos a ser tratada com Ritalina.
Quanto a Silicon Valley, existe um interesse legítimo em relação à saúde dos seus trabalhadores, porém o interesse é quase nulo quanto à noção de Weil sobre “os valores autênticos e puros.” O seu primeiro objetivo é aproveitar as técnicas de meditação budista (segundo o entendimento da neurociência) como suporte da cultura empresarial, tal como acontece no programa desenvolvido pela Google “Search Inside Yourself”.
A passagem que se segue foi retirada do site do Search Inside Yourself Leadership Institute:
“Desenvolvido pela Google e baseado nas mais recentes investigações da neurociência, o nosso programa oferece treino de atenção e mindfulness, base da inteligência emocional necessária a um desempenho máximo e a uma efetiva liderança. Ajudamos profissionais de todos os níveis a ajustar, equipas de gestão a evoluir e lideranças a optimizar o seu impacto e influência.”
O mindfulness a adequar as empresas para “optimizar o impacto”? Visto deste prisma, o mindfulness pode ser retirado do contexto budista de valores, significados e propósitos. A meditação e o mindfulness não são parte de toda uma forma de vida, mas apenas uma tecnologia espiritual, uma app mental que é sempre igual independentemente de como é usada e com que finalidade. É como se estivéssemos a tentar criar um budismo baseado na manutenção cuidadosa de uma delusão, uma delusão da ciência. Faz-me lembrar o cativeiro da Babilónia da bíblia hebraica, só que agora a questão que se coloca aos budistas é se poderemos ou não existir em exílio tecnológico e ainda assim permanecer “um remanescente fiel.”
Trazer as técnicas da meditação budista para dentro da indústria visa dois objetivos. Dá, de facto, às empresas como a Google algo de útil ao bem-estar dos seus empregados, mas também neutraliza um adversário potencialmente incómodo. O budismo tem perspectivas orientadoras próprias, posicionamentos e valores, tal como também tem a cultura empresarial da América. Ora eles não apenas são muito diferentes entre si, como são frequente e fundamentalmente opostos.
Uma forma benigna de encarar esta questão é pensar que uma vez uma pessoa experiencie os benefícios do mindfulness, isso despertará nela interesse no darma, desenvolvendo um verdadeiro apreço pelo budismo – o que será bom. Porém, o problema reside no facto de que nem o budismo nem os trabalhadores poderem controlar o rumo dos acontecimentos. É o mercado que está no comando. É assim que a ideologia funciona. Apropria-se de algo com capacidade para lhe fazer oposição – como o budismo – e reformula-o; e, em algum momento ao longo do caminho, acabamos por nos esquecer que ele alguma vez tenha tido um significado próprio.
Não é que uma ideologia atinja de repente tudo aquilo que precisa ser feito; é, antes, pela  repetição constante de determinados temas e ideias que tendem a construir um tipo de “natureza”. A ideologia funciona dizendo “isto é a natureza das coisas – é assim que elas são; o mundo é assim. A partir daí, Obama fala sobre STEM, os cientistas falam do computador humano, a universidade sobre “preparação da força de trabalho” e a indústria sobre os benefícios da neurociência na meditação. No seu conjunto, tudo isto dá a sensação de um mundo consistente… e após algum tempo perdemos a nossa capacidade de olhar para tudo isto com cepticismo. A partir desse ponto, já não nos preocupamos mais em reivindicar ser tratados de forma humana; a partir daí aceitamos o nosso destino como meras funcionalidades. A função da ideologia é fazer as pessoas acreditarem que a sua prisão é uma redoma de prazer.
Tradução de Raul C. Gonçalves

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