Passei o inverno de 2012 em silêncio num retiro em Forest Refuge, um centro de meditação budista em plena Massachussetts rural. Este ‘blog’ quinzenal relata o dia a dia em silêncio e o quanto os longos retiros oferecem como rumo à nossa vida.
Por Steven Schwartzberg
in The Huffington Post | 11 de fevereiro de 2015
O meu primeiro retiro de silêncio foi feito no Spirit Rock Meditation Center, em Woodacre, Califórnia. A comida em Spirit Rock, até mesmo o pequeno-almoço, era farta e deliciosa: cereais quentes e frios, ovos escalfados, pão variado, vários tipos de geleia e de produtos para barrar e, na ponta da mesa onde era colocada a comida, uma grande taça com fruta.
Essa fruteira continha uma seleção bastante generosa… excepto no que tocava a bananas. A sua quantidade era sempre bastante reduzida e desaparecia rapidamente.
Uma manhã, já perto do final do retiro, estava eu à espera, pacientemente, na fila do pequeno-almoço a pouca distância da mesa de comida. Quando cheguei mais perto, comecei a lançar o meu olhar para a fruteira. Hum, já há poucas bananas. Comecei um complexo cálculo mental: o número de pessoas à minha frente, o número de bananas, as probabilidades de conseguir uma. Seria rés-vés. De repente, já só sobrava uma banana, mas eu já estava perto, as chances pareciam boas. Mas foi então que o tipo da fila em frente à minha tirou a última banana.
De imediato pensei para comigo: ‘Gaita! ele tirou a minha banana!’
Não uma banana. Não a última banana. Mas a minha banana.
Este episódio aconteceu há dez anos e desde então já ficaram para trás uma dúzia de retiros de silêncio. Tenho tido imenso tempo para ponderar sobre como e quando aquela banana se tornou minha.
Tal como vejo agora, a minha reivindicação como proprietário de bananas começou ainda antes de ver a fruteira. Querer uma banana – um simples desejo em si – foi, por si só, suficiente para despoletar o esquema do “meu”: visão-interação-objetivo = calcular quantas (poucas) bananas sobram.
Se eu, ao chegar à mesa, não tivesse visto nenhuma banana, isso não me teria causado qualquer irritação (pelo menos naquela manhã); se tivesse visto bananas mas não desejasse nenhuma, não me teria preocupado; e se houvesse fartura de bananas, não me teria lançado a reivindicar a posse de uma – em vez disso, ter-me-ia permitido à falsa benevolência que acompanha a percepção de fartura.
Eis o que acontece em relação a recursos que desejamos e consideramos escassos: um intenso impulso automático relativamente à propriedade é despoletado, normalmente com uma força desproporcional em relação às circunstâncias. Recursos que tendemos a avaliar – ou a pressupor erradamente – como inesgotáveis vêm acompanhados de um conjunto de armadilhas, completamente diferentes, mas nem por isso menos perigosos (basta atentar para o que se passa no planeta).
O sentido do “meu” estende-se muito para além dos limites do nosso corpo físico. A reivindicação do ego leva-nos para além dos limites da razão. O “é meu…” alcança os mais recônditos e pequenos recantos da vida mental. O mais ínfimo pensamento, fermentado com desejo ou aversão, é suficiente para despoletar em nós a reivindicação de propriedade.
A ausência do “eu” na forma como habitualmente o experienciamos é um princípio fundamental e provocativo do budismo e de outras filosofias orientais. É uma ideia empolgante, apoiada não apenas por candidatos “new age”, mas também por um núcleo duro de neurocientistas que há muito têm visto bloqueadas as suas tentativas de mapearem este difícil e provavelmente inexistente território no cérebro. Mas como ultrapassar a ideia do “não ser” e penetrar na sua experiência efetiva? Eis o busílis metafísico.
Nada na nossa vida interior é tão contraintuitivo. Após anos de prática de meditação consigo agora observar com alguma frequência pensamentos e emoções surgirem e desvanecerem-se e reconhecê-los como hábitos energéticos impessoais: uma mudança de paradigma interior quando ocorrem. Ainda assim, é difícil não descrever a “minha” mente como o local onde ocorrem essas experiências, ou como ultrapassar a noção do “eu” enquanto sujeito que observa esta vacuidade. Eu, meu – estes poderão ser inevitáveis atalhos para descrever o que ocorre ao nível mais profundo da experiência da esfera humana.
Nada disto significa que no dia-a-dia não exista uma separação entre “tu” e “eu”, ou que não tenhamos uma história interior pessoal, uma experiência pessoal subjetiva. Mas sugere de facto de que não existe um “eu” fixo, claramente definido, da forma como nós habitual e inquestionavelmente o assumimos.
Tente definir este “eu”, tente-o agarrar ou limitar e ele desaparecerá como uma névoa ou um arco-íris. Podemos medir a substância de uma nuvem ou os limites do nevoeiro. À distância, estes fenómenos parecem claros. Porém, quanto mais nos aproximamos mais eles se desvanecem.
É por isso que existem escolas inteiras de meditação dedicadas apenas a uma questão, suficiente para ocupar toda uma vida e suficiente para despertar: quem é que medita?
Tocar a verdade deste enigma, não como uma abstração mas como uma experiência comprovável, constitui uma das mais profundas aspirações dos meditadores mais experientes. Uma vez o “eu” substituído enquanto fenómeno credível para aparecer à luz como um hábito profundamente enraizado, muitos outros ensinamentos budistas fazem sentido de uma forma que transcende os conceitos intelectuais. O “não eu” desloca os terrenos da prática, tanto para dentro como para fora do tapete de meditação. É, verdadeiramente, o elemento-chave da meditação budista. A chave do despertar.
Mas nada disto me ocorreu enquanto comia o pequeno-almoço naquela manhã em Spirit Rock, depois do tipo à minha frente, sem qualquer consideração, ter sacado a última banana. “O que eu teria feito”, remoía para comigo enquanto comia a minha papa de aveia sem banana, ‘era dividir a banana em duas metades, tirar uma e deixar a outra metade para outra pessoa. Essa teria sido a atitude mais decente”.
Oops! Devo admitir que a opção acima referida de deixar metade da banana para outra pessoa não me passou pela cabeça durante muito tempo. Só quando ela ocorreu é que reconheci o simulacro de generosidade pseudo-salomónica desta minha “desbananada” racionalização; aquilo que eu de facto imaginei foi o tipo que tirou a última banana (“ele”) a cortá-la em duas e a deixar metade para mim.
*Psicanalista clínico, estudante de Darma e nómada intencional
Tradução de Raul C. Gonçalves
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