Budismo e luto: onde tudo se torna complexo

Passei o inverno de 2012 em silêncio num retiro em Forest Refuge, um centro de meditação budista em plena Massachussetts rural. Este ‘blog’ quinzenal, que começa agora com esta matéria, relata o dia a dia em silêncio e o quanto os longos retiros oferecem de linha orientadora às nossas vidas.
Por Steven Schwartzberg*
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The Huffington Post | 23 de julho de 2015
É uma tarde morna de início de março. Estou profundamente mergulhado no retiro: dez semanas até agora. Ao sair para a minha caminhada matinal pela floresta que envolve o centro, passo pelo quadro de mensagens junto ao refeitório. Reparo numa nota com o meu nome. Estranho. Leio: alguém telefonou a dizer que o meu amigo Bob morreu.
Dou meia volta e regresso ao dormitório, deito-me e choro. É um choro breve, claro e incontido. Alguns minutos depois, volto a sair para andar pela floresta.
A morte de Bob não foi inesperada. Há um ano que ele se debatia com um cancro em estado avançado. Quando comecei o retiro, a sua situação já era precária. Bob tinha 52 anos.
À medida que caminho noto a minha surpresa por o bosque não se apresentar diferente, como se ele devesse refletir esta mudança tremenda. Mas, é claro, isto não constitui uma mudança colossal. Em termos absolutos, excepto para uma minúscula parte da humanidade, nem sequer chega a ser uma mudança.
Há dez semanas que venho caminhando por esta floresta todos os dias. Em várias ocasiões olho para a mata e vejo-a impassível, solidária e reconfortante; como que inclinada à compaixão e à sabedoria; como uma metáfora para resiliência ou resignação. Tenho vindo a investir nestas árvores com segredos mágicos, que elas escolhem, ou não, revelar, de acordo com o seu oculto capricho. Mas isso é como eu as imagino. O bosque é apenas o bosque.
À medida que avanço, vou pisando em tristeza. Reflito, como sempre faço com qualquer morte que me seja próxima, com qualquer causa de sofrimento, sobre o choque que cada perda ainda causa à sua chegada. Como cada morte provoca uma temporária mas profunda perturbação. E, tal como noutros casos, pergunto-me: quais são as regras para o sofrimento? estarei eu a lidar bem ou mal com a morte? – demasiado indiferente? demasiado distante? demasiado indulgente? será o meu sofrimento mais por mim, pelos meus medos, pela minha perda, do que pela pessoa cuja vida terminou?
Um amigo morreu. Que diferença este facto real de impermanência sobre a abstração da ‘verdade’ sobre a minha meditação! Levo meses a tentar interiorizar ‘impermanência’, levá-la até às minhas entranhas. Tudo isto, de repente, parece uma brincadeira. Poderei não me ter apercebido que de forma subtil geri ‘impermanência’ durante todo este tempo? Como se no fundo eu me tivesse eximido ou brincado com a ideia de impermanência, refletindo sobre ela a partir de um lugar de imunidade imaginária?
Ocorre-me o seguinte pensamento: ‘prefiro o jogo da impermanência à verdadeira impermanência’. E logo de seguida: ‘este é o melhor ensinamento até agora de todo o retiro’. Para depois, numa sucessão rápida: ‘estou a transformar a morte do Bob num momento de ensinamento. Será isto falta de respeito? devo-me sentir culpado? sou um imbecil? Assisto ao ir e vir de todos estes pensamentos e reações, como ondas a rebentar numa praia sem fim.
Dou-me conta de que os ensinamentos budistas são dos mais complexos no que toca ao luto. Repetidamente, é-nos ensinado: tudo se altera; tudo o que nasce, morre. Está sempre presente, faz parte dos fundamentos da filosofia, nas Quatro Nobres Verdades: a causa do sofrimento está no sentido de posse. Eis a chave que abre a grande porta da libertação. Tudo é impermanente.
O luto, portanto, está ligado a uma ilusão: a ilusão de que a morte não deve ocorrer, de que nada está fora do âmbito da consciência determinada de impermanência. Os nossos apegos colocam-nos em perigo perante o nosso próprio sofrimento.
E, contudo, o que há de mais natural do que nos prendermos àqueles ou àquilo que amamos? Sem esse apego, será a vida algo mais do que uma mera visão castrada e mecânica de quase compromisso?
Sim, o sofrimento tem origem no apego: mas não é isso verdade em relação a tudo que estimamos na vida? Se não tivermos apego a nada, o que acontecerá ao amor?
Se o luto não é mais do que uma manifestação de avidya (ignorância), então a prática perde a sua humanidade. Mas se não for, então a base do não apego desmorona.
A questão não é sobre a diferença entre apego e ligação.Tenho presente essa distinção, mas neste caso isso parece-me mais um contornar do problema. Pode o amor de algo ou de alguém específico, sustentado ao longo do tempo, existir livre de apego. Quando perdemos o que amamos, por acaso não sofremos?
Trata-se de mais um koan, um outro enigma paradoxal sem qualquer resposta racional. Bem-vindo ao budismo… e à vida.
Continuo a minha caminhada. O pôr do sol, qual fogo ardente num céu de fim de inverno. A paisagem continua saturada de tons de castanho. Alguns botões de flor abrem-se aqui e acolá, mas ainda é demasiado cedo para os tons esverdeados, para o colorido.
Cinquenta e dois anos: Bob era jovem, um ano mais novo do que eu. Demasiado jovem para morrer? chamado antes do tempo? – quem sou eu para o saber? de acordo com que medida, segundo que critério?
Inspiro profundamente. Por um momento, o bafo úmido da floresta tem um sabor a terra, um sinal da mudança de estação, um sinal de impermanência.
Observo a minha estima pelo Bob crescer na minha mente. Pensamento a pensamento, degrau a degrau, através desta mata em silêncio. Sinto as minhas memórias sobre ele envoltas num supersticioso branco de luto. Acontece na morte, particularmente daqueles que tocaram o nosso coração: elevamo-los a um plano superior, atribuímos-lhe o estatuto de heróis.
Continuo a caminhar. O vermelho fogo do céu começa a desvanecer-se rapidamente, num lusco-fusco cinzento. O vermelho e o laranja das nuvens vão ficando mais pálidos, mais e mais indistintos. Oiço um bando de gansos a sobrevoar, mas no que olho para cima apenas vejo sombras contra sombras. No encontro com a escuridão também as árvores vão perdendo a sua nitidez, aglomerando-se numa massa indistinta. Não mais o singular, cada uma parecendo-se com a outra.
A noite vai caindo. Regresso ao meu abrigo temporário enquanto uma luz ténua permanece para guiar o meu caminho.
*Psicólogo clínico, estudante de Darma e nómada intencional
Tradução de Raul C. Gonçalves
http://www.huffingtonpost.com/steven-schwartzberg/buddhism-and-grief-where-_b_8224012.html

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