De repente, a meditação mindfulness virou referência, abriu caminho para as escolas, empresas, prisões e agências governamentais, incluindo o exército dos Estados Unidos. Milhões de pessoas estão a receber benefícios palpáveis da sua prática de mindfulness: menos stress, melhor concentração, talvez até um pouco mais de empatia. Desnecessário será dizer que tudo isto é bem-vindo. Mas… há uma sombra a pairar no horizonte.
Por Ron Purser* | David Loy* in The Huffington Post | 31 de agosto de 2013
A revolução mindfulness parece oferecer uma panaceia universal para resolver praticamente todas as questões do dia a dia. Literatura recente sobre este tópico inclui: Mindful Parenting, Mindful Eating, Mindful Teaching, Mindful Politics, Mindful Therapy, Mindful Leadership, A Mindful Nation, Mindful Recovery, The Power of Mindful Learning, The Mindful Brain, The Mindful Way through Depression, The Mindful Path to Self-Compassion [n.d.e.: uma tradução livre destes títulos para português seria algo como Paternidade Consciente, Alimentação Consciente, Ensino Consciente, Política Consciente, Terapia Consciente, Liderança Consciente, Nação Consciente, Recuperação Consciente, O Poder do Aprendizado Consciente, O Cérebro Consciente, O Caminho Consciente através da Depressão, O Padrão Consciente para a Autocompaixão]. Quase diariamente, os media citam estudos científicos que relatam os inúmeros benefícios para a saúde da meditação mindfulness e como uma prática tão simples pode operar alterações neurológicas no cérebro.
A popularidade crescente do movimento mindfulness transformou-se, também, numa lucrativa indústria artesanal. Consultores habilidosos prometem que o treinamento em mindfulness fará aumentar a eficiência do trabalho, reduzir o absentismo e reforçar as competências essenciais a uma carreira de sucesso. Alguns chegam mesmo a afirmar que o treino em mindfulness pode funcionar como uma “tecnologia de ruptura”, podendo transformar mesmo as mais disfuncionais companhias em organizações mais generosas, solidárias e sustentáveis. No entanto, até agora, nenhum estudo empírico foi publicado que sustente tais reivindicações.
Nos seus esforços de marketing, os proponentes geralmente apresentam os seus programas como sendo “de inspiração budista”. Há um certo prestígio e vanguardismo em dizer aos neófitos que o mindfulness é um legado do budismo – uma tradição famosa pelos seus métodos de meditação antigos e testados pelo tempo. Mas, por vezes, no mesmo fôlego, esses consultores asseguram aos seus patrocinadores empresariais que a sua marca particular de mindfulness abdicou dos laços e filiações com as suas origens budistas.
Desprender o mindfulness do seu contexto budista ético e religioso é compreensível como um expediente conveniente para tornar tal treino num produto comercialmente viável no mercado aberto. Mas a corrida para secularizar e mercantilizar o mindfulness numa técnica comercial pode estar a levar a uma desnaturação infeliz desta prática antiga, destinada a muito mais do que a aliviar uma dor de cabeça, reduzir a tensão arterial ou a ajudar executivos a tornarem-se mais focados e produtivos.
Enquanto desnudada técnico secular – o que alguns críticos estão agora a chamar de “McMindfulness” – pode tornar-se mais apaladada ao mundo empresarial, mas a descontextualização da sua finalidade libertadora e transformadora original, bem como a sua fundação na ética social, equivale a uma barganha faustiana. Em vez de aplicar o mindfulness como um meio de despertar as pessoas e as organizações em relação às raízes prejudiciais da ganância, má vontade e ilusão, ela é usualmente remodelada numa técnica banal e terapêutica de autoajuda que pode, na verdade, reforçar essas raízes.
A maioria dos relatos científicos e populares que circulam nos meios de comunicação tem retratado o mindfulness em termos de redução de stress e melhoria da atenção. Esses benefícios de desempenho humano são apregoados como condições sine qua non à atração das empresas modernas pelo mindfulness. Mas o mindfulness, como entendida e praticada dentro da tradição budista, não é meramente uma técnica eticamente neutra para reduzir o stress e melhorar a concentração. Ela é antes uma qualidade diferenciada da atenção que é dependente e influenciada por muitos outros fatores: a natureza dos nossos pensamentos, palavras e ações, a nossa maneira de ganhar a vida, e os nossos esforços para evitar comportamentos nocivos e inábeis, enquanto desenvolvemos aqueles que são favoráveis à ação correta, à harmonia social e à compaixão.
É por isso que os budistas diferenciam mindfulness (vigilância, atenção plena) correta (samma sati) da incorreta (miccha sati). A distinção não é moralista: a questão é saber se a qualidade da consciência é caracterizada por intenções saudáveis e qualidades mentais positivas que levem ao florescimento humano e optimizem o bem-estar tanto dos outros quanto de nós próprios. De acordo com o Cânone Pali (os primeiros ensinamentos relatados como vindos do Buda), até mesmo aquele que comete um crime premeditado e hediondo pode estar a exercitar mindfulness, embora mindfulness incorreto. Claramente, a atenção plena e a concentração focada de um terrorista, de um assassino franco-atirador ou de um criminoso do colarinho branco não têm a mesma qualidade da atenção que o Dalai Lama e outros seguidores budistas desenvolveram. O Mindfulness correto é orientado por intenções e motivações baseadas na autocontenção, estados mentais saudáveis e comportamentos éticos – metas que incluem, mas suplantam, a redução do stress e melhoria da concentração. Outro equívoco comum é que a meditação mindfulness é uma questão privada, do foro íntimo. O Mindfulness é muitas vezes comercializado como um método de auto-realização pessoal, um alívio das provações e tribulações da implacável vida empresarial. Tal orientação individualista e virada para o consumo da prática da meditação mindfulness pode ser eficaz para a autopreservação e autopromoção, mas é essencialmente impotente para atenuar as causas do desconforto coletivo e organizacional. Quando a prática de mindfulness é compartimentada desta forma, a interligação de motivos pessoais perde-se. Há uma dissociação entre a própria transformação pessoal e o tipo de transformação social e organizacional que leva em conta as causas e condições do sofrimento num ambiente mais amplo. Tal colonização do mindfulness tem também um efeito de instrumentalizar e reorientar a prática às necessidades do mercado, ao invés de uma reflexão crítica sobre as causas do nosso sofrimento coletivo ou dukkha social.
O Buda realçou que o seu ensinamento era sobre a compreensão e a erradicação de dukkha (“sofrimento” no sentido mais amplo). Então, como fica o dukkha causado pela maneira como as instituições funcionam? Muitos defensores das empresas argumentam que a mudança transformadora global começa consigo mesmo: se a sua mente tornar-se mais focada e tranquila, então a transformação social e organizativa virá naturalmente. O problema dessa formulação é que hoje as três motivações nocivas que o budismo destaca – ganância, má vontade e ilusão – já não estão apenas confinadas a mentes individuais, mas tornaram-se institucionalizadas em forças que estão para além do controlo pessoal. Até ao momento, o movimento mindfulness tem evitado qualquer consideração séria sobre o porquê do stress estar tão presente nas instituições empresariais modernas. Em vez disso, as empresas apanharam o comboio da meditação mindfulness porque convenientemente invertem o ónus para o empregado individual: o stress é enquadrado como um problema pessoal, e o mindfulness oferecida como o remédio certo para ajudar os funcionários a trabalharem mais calma e eficientemente dentro de ambientes tóxicos. Envolta numa aura de carinho e humanidade, o mindfulness é transformada numa válvula de escape, como uma forma de desabafar – uma técnica para lidar e se adaptar às pressões e tensões da vida empresarial. O resultado é uma versão atomizada e altamente privatizada da prática de mindfulness, que é facilmente cooptada e limitada ao que Jeremy Carrette e Richard King descrevem, no seu livro Selling Spirituality: The Silent Takeover of Religion como uma orientação “acomodacionista”. O treinamento em mindfulness tem um grande apelo porque se tornou um método moderno para subjugar disfunções dos trabalhadores, promovendo uma aceitação tácita do status quo, e como uma ferramenta fundamental para manter a atenção focada em objetivos institucionais. Em muitos aspectos, o treinamento empresarial de mindfulness – com a sua promessa de que funcionários mais calmos e com menos stress serão mais produtivos – tem uma familiar e estreita semelhança com os agora desacreditados movimentos de “relações humanas” e de treinamento da sensibilidade tão populares nos anos 50 e 60. Esses programas foram criticados pelo uso manipulador de técnicas de aconselhamento, como a “escuta ativa”, implantada como um meio de pacificar os trabalhadores, fazendo-os sentir que as suas preocupações eram ouvidas enquanto as condições existentes no local de trabalho se mantinham inalteradas. Estes métodos passaram a ser conhecidos como “psicologia das vacas”, porque vacas contentes e dóceis dão mais leite. Bhikkhu Bodhi, um monge budista ocidental, foi muito claro no seu alerta: “Na ausência de uma crítica social afiada, práticas budistas poderiam facilmente ser usadas para justificar e estabilizar o status quo, tornando-se um reforço do capitalismo de consumo”. Infelizmente, uma visão mais ética e socialmente responsável da meditação é vista agora por muitos praticantes como uma preocupação tangencial ou como uma politização desnecessária da sua jornada pessoal de autotransformação. Espera-se que o movimento mindfulness não siga a trajetória comum da maioria dos modismos empresariais – entusiasmo desenfreado, aceitação acrítica do status quo e eventual desilusão. A fim de se tornar uma genuína força positiva de transformação pessoal e social, ela deve recuperar um quadro ético e aspirar a fins mais nobres que levem em conta o bem-estar de todos os seres vivos. *Ron Purser é professor de gestão na Universidade Estatal de São Francisco, EUA *David Loy é professor Zen