Quando se trata de eliminar a pobreza, a caridade privada não pode substituir as políticas públicas e estas devem ser guiadas por uma perspectiva moral. Dispomos de recursos para ultrapassar a pobreza. A grande questão que se coloca é, como sempre, se temos vontade de o fazer.
Por Bhikkhu Bodhi* in Buddhist Global Relief | 23 de janeiro de 2014
Neste mês, há 50 anos, no seu primeiro discurso oficial ao povo norte-americano, o presidente Lyndon Johnson declarou “guerra incondicional à pobreza na América”. Johnson exortou o congresso e os americanos a juntarem-se a ele na luta contra a pobreza; um combate, disse ele, que “não nos podemos dar ao luxo de perder”. Johnson defendeu que para melhorar a condição dos desvalidos, havia que atacar a raiz da pobreza e não apenas os seus sintomas.
Nos anos seguintes, a administração Johnson deu início a uma série de programas – alguns dos quais se mantêm até hoje – no sentido de oferecer aos pobres melhores condições nas áreas da educação, saúde, trabalho e habitação. Tais programas incluíram Medicare e Medicaid, Head Start, mais fundos para educação K-12, bolsas para estudantes de baixos recursos, habitação social para famílias de baixo rendimento e ajuda legal aos mais pobres. Com o presidente Johnson, o projeto-piloto “food stamps” (senhas de alimentos) tornou-se um programa permanente com o objetivo de eliminar a desnutrição, presente nos Estados Unidos nos anos 60 com níveis semelhantes a um país do Terceiro Mundo.
No entanto, na política como na física, para cada ação há uma reação igual e oposta. Não demorou muito para que a Direita declarasse a guerra contra a pobreza como um fracasso. O presidente Reagan liderou esse movimento com a seguinte frase: “Nós fizemos uma guerra contra a pobreza e a pobreza venceu”. Esta ideia tem se vindo a repetir ao longo de décadas, ornamentada com relatos de rainhas da previdência a conduzir Cadillacs, gourmets desempregados e surfistas a recolher senhas de alimentos. Se as pessoas permanecem pobres – dizem -, é porque os programas de assistência tornam-lhes a vida demasiado fácil e a melhor forma de as ajudar a escapar à armadilha da pobreza é reduzindo ou abolindo os programas assistenciais que lhes são destinados. Como resultado, desde a década de 80 tem havido uma redução nos gastos do Estado (com os programas de assistência), cortes que pairam hoje sobre vários programas fundamentais, incluindo o das senhas de alimentos.
Mas enquanto é muito fácil propagar mitos como se de verdades se tratassem, os factos falam por si de forma bastante clara. Embora, sem dúvida, se tenham verificado abusos, a evidência mostra que esses programas funcionam. Entre 1967 e 2012, eles ajudaram a reduzir a taxa global de pobreza de 26% para 16%, e a pobreza infantil de 29% para 19%. De acordo com o Censo Suplementar de Medição da Pobreza, a rede de segurança social é responsável hoje por colocar 41 milhões de pessoas, dos quais 9 milhões de crianças, acima do limiar da pobreza. Só em 2011, o programa de senhas de alimentos manteve 4,7 milhões de norte-americanos, entre eles 2,1 milhões de crianças, fora da pobreza.
Contudo, apesar dos inegáveis progressos verificados, a pobreza nos EUA continua a ser galopante. Em 2012, quase 50 milhões de pessoas foram classificadas como pobres, com 16 milhões “extremamente pobres” a viver abaixo de metade da linha da pobreza. Estes números lembram-nos o quanto ainda temos por fazer para tornar este país num paraíso de justiça social e económica. Os falcões do défice lamentam que não nos possamos dar ao luxo de gastar em programas de assistência aos pobres; e, no entanto, a nossa luta contra a pobreza não é bloqueada por uma escassez de recursos, mas sim por políticas e leis que beneficiam os ricos à custa dos demais. Ao longo dos últimos 50 anos, a parte da riqueza produzida no país com destino a 1% dos mais ricos mais do que duplicou. Entre 2009 e 2010, 93% do rendimento gerado pelo país destinou-se a esses 1%; apenas 7% da riqueza, meras migalhas, foram para os restantes 99% . Enquanto os rendimentos dos ricos têm subido, aos trabalhadores do setor de fastfood e serviços são pagos baixos salários, sem quaisquer benefícios adicionais. Estas pessoas são frequentemente forçadas a ter dois empregos para poderem sustentar as famílias, e uma doença em casa pode tornar-se numa catástrofe financeira.
Nós dispomos dos recursos para superar a pobreza. A grande questão é, como sempre, se temos a vontade de o fazer. Observando de uma perspectiva budista a persistência da pobreza, podemos detectar entre os debates deliberativos uma disputa entre duas concepções contrárias da natureza humana, cada uma conduzindo a uma visão moral distinta. Uma toma as pessoas como seres essencialmente separados, responsáveis apenas pelos seus interesses pessoais e do seu restrito círculo de familiares e amigos. Desse ponto de partida, estamos todos condenados a uma competição inevitável contra os demais pelas coisas boas da vida, sendo a melhor maneira de garantir o nosso sucesso o aumentar do nosso poder e influência para formular políticas públicas em nosso favor. Esta perspectiva vê os pobres como fracassados, rejeitados que devem pacientemente suportar o seu lamentável destino. Temos a obrigação de ajudá-los, claro, mas a nossa ajuda deve ser encarada como um ato de caridade privada – não deve estar regulamentada numa plataforma política –, não sendo, portanto, da nossa responsabilidade coletiva.
Do ponto de vista oposto, que é o proporcionado pela visão budista, vemos as pessoas como responsáveis umas pelas outras – na verdade, numa perspectiva superior, vemos os outros como nós mesmos -, interdependentes e a se sustentarem mutuamente, cada um no todo e o todo em cada um. Desta perspectiva, olhamos para os outros não como obstáculos ao nosso próprio sucesso, não como meros meios para avançarmos, mas como fins em si mesmos, merecedores de uma oportunidade justa de desenvolverem ao máximo as suas capacidades. Apesar das nossas inerentes limitações em conseguir ajudar todos os que necessitam, temos a obrigação de dar a nossa contribuição para o bem-estar da nação a que pertencemos e das comunidades em que estamos inseridos. Esta obrigação não é meramente pessoal. Estende-se à nossa voz coletiva, o Estado, enquanto órgão da política nacional, e devemos esforçar-nos em assegurar que ninguém fique afastado do acesso aos serviços básicos condizentes a uma vida decente.
Nesta perspectiva, a pobreza reflete-se negativamente não apenas sobre aqueles que afeta diretamente, mas na nossa ordem social, na nossa nação e em nós próprios, em cada um de nós individual e coletivamente. Se alguns à nossa volta são pobres, confrontados diariamente com uma luta para pagar comida, renda de casa e contas médicas, isto, em parte, é porque eu também sou pobre – insuficientemente dotado de amor, compaixão e sentido de justiça capazes de me motivar a corrigir a sua pobreza. Mas podemos agir juntos, e fazêmo-lo através da adoção de programas e políticas capazes de melhorar a sorte daqueles que não se podem ajudar a si mesmos. Fazêmo-lo a partir da profunda convicção de que cada ser humano possui dignidade intrínseca e que lhe deve ser dada oportunidade a essa mesma dignidade. E fazêmo-lo, também, a partir da convicção de que quando as pessoas são tratadas com respeito, elas retribuem agindo com responsabilidade a partir de sua dignidade interior.
A pobreza ainda persiste hoje em dia porque perdemos a perspectiva moral como estrela orientadora da política pública. Em vez disso, seguimos a lei da selva, confortáveis em abandonar os pobres à própria sorte, exigindo-lhes que mobilizem recursos que eles simplesmente não possuem. E a razão por que mudamos nesta direção, afastando-nos dos altos ideais da era da Grande Sociedade, é porque a visão e os valores do capitalismo corporativo sobrepuseram-se aos da solidariedade humana e da responsabilidade mútua. Para se erradicar a pobreza, essa tendência tem de ser invertida. A visão individualista deve dar lugar a uma outra que realce a nossa unidade essencial, a concorrência deve ser equilibrada pela assistência mútua e pelo respeito.
Mas há mais para além da erradicação da pobreza que depende disto. A longo prazo, pode mesmo ser a condição necessária à salvação da própria civilização.
Tradução de Grupo de Tradução do Centro Nalanda Editado por Raul C. Gonçalves
*Ven. Bhikkhu Bodhi, monge budista theravada natural de Nova Iorque, EUA, é autor de várias obras de referência, sendo a mais recente a tradução integral do Anguttara Nikāya (Wisdom Publications, 2012). Em 2008, fundou a Buddhist Global Relief, uma organização sem fins lucrativos de combate à fome e de assistência à educação em países que sofrem de pobreza crónica e desnutrição. Foi ainda editor da Buddhist Publication Society em Kandy, Sri Lanka.