Novos “gadgets” e “apps” tentam fazer a meditação maindfulness – uma prática muitas vezes enigmática – muito mais fácil para principiantes. Mas até onde podemos esperar ser iluminados pelos nossos “smartphones”?
Por Michael Hsu
in The Wall Street Journal | 31 de Dezembro de 2015
A meditação já é suficientemente popular para que, provavelmente, você mesmo conheça alguém capaz de discorrer interminavelmente sobre os seus benefícios: redução do stress e da ansiedade, ser mais gentil, atingir um estado geral de bem-estar… Seja inspirado por um daqueles propósitos de ano novo, seja pela curiosidade ou pelo departamento de recursos humanos da sua empresa – várias entidades empresariais, desde a Target à Goldman Sachs, oferecem cursos de mindfulness -, até pode ser que você já tenha experimentado. Mas o paradoxo é que aquilo que devia ser fácil – não fazer nada – está entre as coisa mais difíceis de fazer.
Pessoalmente, tenho vindo a estudar há mais de 15 anos um tipo de meditação chamada wu ming qigong. Ao contrário das práticas de mindfulness tão populares atualmente, esta não envolve qualquer técnica especial de respiração ou de atenção direcionada. Durante anos fui fanático do qigong, praticava-o todos os dias, participava nos retiros… até que me deparei com um problema. Com três crianças pequenas e um emprego a tempo inteiro, deixei de conseguir devotar tanto tempo quanto gostaria à meditação – por vezes, durante semanas, mal conseguia praticar. Assim, no ano passado, em vez de resolver meditar mais – uma decisão que eu tinha a certeza iria quebrar passado pouco tempo – decidi ver se poderia meditar menos, mas melhor.
Como editor de tecnologia – e como seria de prever -, procurei uma solução na coisa menos meditativa e mais alienante da minha vida: o meu smartphone – especialmente apps que combinassem eletroencefalografia (EEG) com auscultadores capazes de fornecer biofeedback aos meditadores. Os auscultadores captam a atividade eléctrica emitida pelo cérebro e as apps interpretam os dados de forma a produzir sinais visuais ou áudio, avisando quando um estado meditativo é atingido. Estas aplicações são como fitness trackers da mente: ferramentas de motivação que prometem eliminar muitas das dúvidas sobre meditação.
NeuroSky’s MindWave Mobile (neurosky.com) é um desses aparelhos EEG. Tem apenas um sensor e um preço na ordem dos 100 dólares. O Emotiv Insight (emotiv.com), mais avançado, tem cinco sensores e custa 659 dólares. Mas o produto que oferece a experiência mais agradável é o Muse (choosemuse.com), uma elegante cinta que se coloca à volta da testa, e custa 299 dólares.
A app que acompanha o Muse usa audio feedback para facilitar o processo de meditação: som do mar, da chuva, música “new-age”. Quando a app acha que a mente está a divagar, os sons tornam-me mais turbulentos. As ondas do oceano bramem, a chuva cai mais forte. Por outro lado, quando a app detecta que a sua mente está a ficar mais focada – a meditação orientada na app sugere que coloque a atenção na respiração -, os sons de feedback tornam-se mais calmos e, por fim, serenos. E se mantiver esse estado para além de alguns segundos, a app emite o som de recompensa final: chilrear de pássaros.
A minha primeira sessão com o Muse foi frustrante. Embora eu meditasse há anos, a técnica de focar a atenção era-me desconhecida. Durante vinte minutos, não consegui ouvir nada para além de um turbulento feedback. Mas após várias tentativas ao longo de vários dias, comecei a ter uma ideia daquilo que o Muse pretendia de mim – tudo normal, de acordo com o Dr. Norman Farb, professor assistente de psicologia na Universidade de Toronto e responsável pelo estudo-piloto do aparelho, financiado pelo governo canadiano e pelo seu fabricante, a InteraXon. “De uma forma empírica diria que a maioria das pessoas começa, ao fim de cinco a sete dias, a habituar-se ao sinal de feedback”, disse. Finalmente, ouvi-o: o meu primeiro piar.
Caçar esses chilreares tornou-se tão viciante quanto “Angry Birds”. Falhar só me fazia querer iniciar uma nova sessão outra vez… e outra vez… e outra vez. Passei de nunca ter tempo para meditar para “musear“ (musing é o termo usado pelo fabricante) de forma obsessiva.
A app do Muse tem muitos dos motivadores métricos encontrados nos fitness trackers, como o Fitbit. Apresenta um gráfico com o tempo total de utilização do aparelho e mostra em destaque qual a percentagem desse tempo em que estivemos em estado “calmo”. A atribuição de uma pontuação ao nosso esforço meditativo é, inquestionavelmente, “não-zen”, mas não deixa de ser engraçado de verificar no final de cada sessão.
Alguns aspectos da utilização do Muse são intrinsecamente não-meditativos. Cada vez que coloca o aparelho na cabeça, a app pede-lhe que complete um exercício de calibração, com um minuto de duração, nomeadamente: pensar no maior número de nomes de ruas, músicos, utensílios de cozinha ou qualquer outra categoria de objetos. Às vezes demora algum tempo até os sensores conseguirem captar um sinal (espere um pouco até começar a suar ligeiramente da fronte, recomenda o fabricante).
Uma vez apanhado o jeito de “musear”, não demorei muito tempo a notar um maior sentido de consciência a espalhar-se sobre o meu quotidiano. De repente, vi-me extremamente consciente sobre qualquer assunto que tivesse pela frente – a minha filha sentada no meu colo ou um colega com quem estivesse a falar -, até mesmo o cheiro do café a pairar no ar, vindo do pastelaria a um quarteirão de distância.
Seria isto um sabor a “consciência” – esse sentido de estar no momento presente em vez de o estar a avaliar ou a andar perdido em pensamentos sobre o passado ou o futuro? (atingir este estado não é o objetivo do tipo de meditação que eu tenho praticado há anos) E será que o Muse ajudou-me de facto a desbloquear isso?
Um jogo mental completo
Judson Brewer é o diretor de pesquisa do Center for Mindfulness in Medicine, Health Care and Society da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachussetts, instituição fundada por Jon Kabat-Zinn, o padrinho do movimento mindfulness no Ocidente. Quando lhe relatei a minha experiência com o Muse, o Dr. Brewer mostrou-se reticente. Ele questiona-se como é que um aparelho com apenas quatro sensores consegue medir aquilo que o Muse diz medir e adverte para que subtis e imperceptíveis movimentos musculares nos olhos, fronte e maxilar podem confundir qualquer aparelho EEG portátil. (Segundo Graeme Moffat, diretor para os assuntos científicos e de regulamentação da InteraXon, o algaritmo da app permite facilmente detectar e ignorar isso.) A acrescentar a isso, refere o Dr. Brewer, a eficácia do algoritmo do Muse para detectar um estado de “calmo” ainda está por validar. (Segundo o Dr. Moffat, esses estudos estão em andamento, com alguns já concluídos e em fase de avaliação pelos pares.)
Agora, sim, fiquei curioso! Pedi ao Dr. Brewer se podia testar o seu equipamento para comparar – e ele concordou.
Já tinha lido sobre o tipo de sistema EEG usado pelo Dr. Brewer, mas só depois de chegar ao seu laboratório é que percebi o que ia ser necessário para preparar a experiência. Primeiro, coloquei aquilo que parecia ser uma touca de natação com 128 buracos; depois, Remko van Lutterveld, bolseiro de pós-doutoramento, raspou o meu couro cabeludo em cada um dos pontos e esguichou gel electrólito no meu cabelo e ligou os 128 eléctrodos à touca. Cerca de vinte minutos depois, com uma quantidade de cabos a saírem-me da cabeça, eu estava pronto para meditar.
O primeira exercício seria um teste. Tinha que meditar e observar uma linha num monitor que iria subir ou descer (tipo gráfico da bolsa de valores). No final, teria de dizer como é que achava que os meus esforços para meditar tinham afetado a linha.
Usei a mesma técnica que fez a app do Muse piar. Como era inevitável, a linha começou a subir. Quando relaxei a minha atenção, a linha desceu. Boa!, pensei. E disse ao Dr. Brewer que meditar tinha feito, claramente, a linha subir.
Mas eu estava errado. A linha devia descer quando eu estivesse a meditar, disse-me o Dr. Brewer. Fiquei confuso. Após tentar mais algumas vezes, consegui perceber qual o estado para que o sistema tinha sido treinado. E era completamente diferente do que o Muse procurava.
Quando apresentei esta discrepância ao Dr. Moffat, este não se mostrou surpreendido. A Muse foi desenhada para medir a técnica chamada de “atenção focada”; o equipamento do Dr. Brewer mede a “atenção sem esforço”, disse. (Isto casa com a minha experiência: o Muse sabe-me mais a “esforço”, enquanto o equipamento do Dr. Brewer a “largar”.) O objectivo final do Muse, acrescenta o Dr. Moffat, “não é obter o grau de precisão que (o Dr. Brewer) procura alcançar, é introduzir a meditação às pessoas” e retirar as incertezas da prática.
Mas será isto meditação?
Acabei por falar com meia dúzia de neurocientistas sobre equipamentos como o Muse. O Dr. Arnaud Delorme, da Universidade de San Diego, comunga do cepticismo e preocupação do Dr Brewer, enquanto os Drs. Randy McIntosh e Farb, ambos ligados à Universidade de Toronto, e que já conduziram pesquisas usando o Muse, dizem que o aparelho foi capaz de fornecer dados úteis. O Dr. Farb expressou um “optimismo cauteloso” sobre o potencial do Muse.
Surpreendente para mim foi a opinião de Richard J. Davidson, fundador do Center for Healthy Minds da Universidade de Wisconsin-Madison. O Dr. Davidson tem vindo a estudar amplamente os efeitos da meditação sobre o cérebro e apresenta-se a si mesmo como um “meditador profundo e dedicado”. Contudo, ele descarta liminarmente a utilização de qualquer aparelho de biofeedback na prática de meditação – sejam EEG domésticos ou aparelhos mais sofisticados, como o do Dr. Brewer.
“Se recuar até à raiz da palavra, ‘meditação’ em sânscrito significa ‘familiarização’, familiarizar um indivíduo com a natureza da sua mente. Quando nos focamos em sinais externos, estamos a diminuir as nossas capacidades para reconhecer determinadas capacidades da nossa mente”, disse. Segundo o Dr. Davidson, usar biofeedbacks para quem quer começar a praticar meditação, pode ser mais prejudicial do que útil. Do ponto de vista científico, nós não conhecemos ainda o suficiente sobre que sinais cerebrais procurar capazes de indicar um efetivo estado meditativo. “A questão nesta altura é absurda. Não faz, absolutamente, qualquer sentido”, diz o Dr. Davidson.
Sem surpresa, o meu professor de meditação, Nan Lu, um médico formado de maneira clássica em medicina tradicional chinesa, também não se mostrou impressionado. Para ele, nunca se poderá usar uma máquina para ajudar na meditação, porque ela guia a pessoa a olhar para o exterior em vez de se focar no seu interior. Usar a meditação para simplesmente desenvolver o foco da atenção é como “usar um diamante para nivelar uma mesa”, acrescentou o Dr. Lu.
“Musear” pode não ser meditar – uma poderosa prática ancestral. Mas poderá ser um pequeno passo nessa direção? Baseado num estudo-piloto da Muse, recentemente completado pelo Dr. Farb, ele acha que a pergunta merece ser explorada. “Pode ser que dentro de um amplo trajeto de aprendizagem do caminho da meditação, (o Muse seja) apenas um por cento do caminho ou o primeiro meio por cento do caminho”, diz o Dr. Farb. “Mas é preciso começar de algum lugar.”
Tradução de Raul C. Gonçalves