O especialista Will Hall defende uma abordagem dialógica e comunitária de saúde mental, conhecida como Diálogo aberto.
ELISA BATALHA / RADIS Comunicação e Saúde
Ex-usuário do sistema psiquiátrico americano e hoje terapeuta, Will Hall se apresenta como conselheiro e facilitador, com trabalho baseado em uma abordagem dialógica e comunitária de saúde mental, conhecida como Diálogo aberto (Open dialogue). Defensor de abordagens desmedicalizantes, combate o estigma que sofrem os pacientes que ouvem vozes. “O diagnóstico muitas vezes é um insulto”, afirma ele na entrevista que concedeu à Radis, quando visitou a Fiocruz, em julho. Professor, formado no Instituto de Trabalho Processual de Portland, nos Estados Unidos, e atualmente doutorando no Centro Médico da Escola de Saúde Mental e Neurociência na Universidade de Maastricht, na Holanda, ele defende que seu trabalho e aprendizado se consolidaram em suas próprias experiências de recuperação da loucura. “Hoje sou apaixonado por novas visões da mente e o que significa ser humano”, registra no seu site. Na entrevista, ele fala sobre sua relação com a família, resgata situações do tempo em que era paciente e de hoje, quando atua como terapeuta, defende a participação de usuários nos processos de recuperação e alerta para as estratégias de cooptação engendradas pelo mercado. Ao fim, recomenda: “A solução para os problemas de saúde mental é ouvir a voz dos pacientes”.
Você pode relatar um pouco da sua experiência no sistema psiquiátrico?
Eu nasci e cresci em uma família onde havia muita violência e trauma, não violência em si, mas os efeitos dela. Meu pai era veterano de guerra da Coreia, foi encarcerado e vítima de tortura, um sobrevivente de muito trauma. Minha mãe também era sobrevivente de abuso sexual. Eu não os culpo, mas é certo que esse contexto explica muito o que aconteceu comigo. Na minha família sempre havia explosões de agressão e de raiva, era muito amedrontador para mim ser criança nesse contexto. Nunca me sentia seguro na minha família, ao mesmo tempo em que nunca falávamos sobre o que estava acontecendo, sobre as emoções que estávamos sentindo, eu, minha mãe, meu irmão e meu pai. Isso me confundiu muito quando criança. Eu nunca podia antecipar as reações do meu pai: em um momento era muito carinhoso, expressava muito amor, no outro estava zangado, me atacava. Eu tinha que observar minuciosamente, ter sensibilidade para antecipar suas reações. Essa era uma ferramenta que usava para me proteger.
Como isso se refletiu na na vida adulta?
Muitos anos depois, quando eu estava no contexto do hospital psiquiátrico, esse comportamento foi conectado ao sintoma de paranoia. A partir deste contexto é possível entender a sensação de nunca me sentir seguro, nunca confiar nas pessoas, sempre antecipar o que vai acontecer, sempre temer. Além disso, ainda menino eu experimentava estados alterados e escutava vozes agressivas. Eu tinha muito medo, mas nunca falei sobre isso com minha família. Depois que terminei a escola e fui trabalhar, com 26, 27 anos de idade, tive uma grande crise de stress. Eu escutava vozes que diziam para eu me matar, que minha vida era um fracasso, que era culpado por destruir minha vida. Eu tinha muito medo dos meus companheiros de quarto, de outras pessoas. Foi então que tentei o suicídio na ponte Golden Gate e não consegui, procurei ajuda em uma clínica e fui internado contra a minha vontade. Depois disso comecei a ter pesadelos sendo violentado, porque aquilo foi um sequestro. Hoje, que trabalho com a perspectiva da redução de danos, eu sei de pessoas que tiveram a experiências de se sentirem seguras no hospital, mas a minha experiência foi de violência, de trauma. Quando saí do hospital, eu descobri que essas experiências estão por toda parte e que os hospitais e tratamentos psiquiátricos cometem violência. Mas também descobri que existia um movimento para mudar isso, um movimento de direitos humanos no qual eu me envolvi e por isso estou aqui.

Que tipo de violências você se refere?
Eu vi muitos casos de violência no hospital. Eu me sentia em uma prisão, solitário e de castigo. Eles me medicaram e por fim disseram que eu tinha um tipo de esquizofrenia, que nunca me recuperaria. Disseram que eu deveria abandonar minha carreira de ambientalista, para diminuir o estresse. Quando eu saí do hospital, percebi que aquilo que médicos e terapeutas me diziam era mentira. Muitas pessoas que recebem diagnóstico de esquizofrenia podem se recuperar, muitas pessoas não necessitam usar remédios, a violência no hospital não é normal. Existe um movimento para mudar isso, e existem abordagens de saúde mental alternativas, menos violentas. O que foi mais horrível dessa experiência foi a normalização da violência e também o diagnóstico, a etiqueta. Quando uma pessoa diz para a outra que é esquizofrênica é como matá-la, no nível espiritual, uma espécie de profecia anunciada, por conta do estigma e do isolamento. Se você acredita que todos os empregados da sua empresa vão fracassar, isso aumenta a chance de eles realmente fracassarem, porque estão sempre recebendo essa mensagem; se os pais têm a ideia de que seu filho é mau e sempre repetem “você é mau”, aumentam a possibilidade da criança vir a ser má.
Como iniciou sua recuperação?
Um dos ingredientes mais importantes da minha recuperação foi descobrir a verdade sobre a minha condição. Minha experiência está muito conectada a minha história de criança em uma família com trauma e violência, mas no hospital eles não me perguntavam nada sobre isso. Eles acreditavam que o problema era genético, do meu cérebro. Hoje eu sei que isso é apenas uma opinião e que não há provas conclusivas, há outras perspectivas dentro da psiquiatria. Eu também comecei a me interessar pelos meus antepassados. Do lado da minha mãe, meus avós eram índios americanos. Comecei a pensar que talvez meus estados alterados de consciência fossem um presente. Na perspectiva médico-científica, ouvir vozes é uma enfermidade, mas na perspectiva dos indígenas, dos meus antepassados, é um presente. Eu comecei a pensar na minha condição por uma perspectiva mais ampla, sem temer tanto minhas experiências, enfrentando-as com curiosidade e investigando o que poderia me ajudar, não somente acreditando nos especialistas. Eles não me deram informação honesta sobre a minha condição, as opções e os riscos.
Como surgiu o interesse em se tornar terapeuta?
Quando saí do hospital, descobri que podia fazer amizades com outros pacientes e pouco a pouco, pude me conhecer e participar de grupos de apoio mútuo. Com essa experiência, comecei a dar treinamentos e a consultar pessoas. Eu aprendi a ser terapeuta a partir do ponto de vista do paciente. Foi o primeiro passo para estudar. Recebi meu diploma, hoje sou terapeuta, professor e estudante de doutorado, mas tenho um olhar diferente, a partir da redução de danos. Trabalho com pessoas para retirar medicamentos e mudar suas vidas, com ideias muito diferentes daquelas usadas no sistema de saúde mental tradicional. A experiência que tive com os grupos de apoio mútuo me mostrou que aquilo que oferecíamos aos pacientes era melhor do que o que ofereciam os terapeutas. Eu aprendi muito com esses grupos. Depois eu descobri a psicologia Junguiana, que respeita muito os estados alterados de consciência, e fala da importância dos obstáculos no crescimento das pessoas, uma perspectiva muito positiva para as pessoas. Também estudei um método chamado “Diálogo aberto”, uma forma de trabalhar com famílias e com as redes sociais da pessoa, que situa os problemas não dentro do cérebro, mas sim nas relações, e trabalha com a comunicação. Um processo de escuta muito sensível para permitir que as vozes que não se ouvem tenham expressão. Isso pode ajudar muito as pessoas, sem o uso de muitos medicamentos.
Como o senhor avalia a atuação do movimento de apoio entre pares hoje?
Essa é uma questão complexa e política. Havia um movimento de pacientes totalmente independente, que cresceu e ganhou força e poder na sociedade. Isso forçou uma mudança no sistema, o que pode ser bom ou uma forma de cooptação. Há uma tensão dentro da comunidade de pacientes sobre o que vai acontecer quando começarmos a receber fundos ou postos do sistema. Alguns sistemas de saúde mental defendem a necessidade de clínicas ou agências terem funcionários assalariados. Isso faz com que tratem pacientes sob uma perspectiva muito conservadora, valorizando o uso de medicamentos e a posição dos médicos como especialistas, não têm os valores do movimento. Essa é uma forma de cooptação, já que usa pacientes para legitimar a perspectiva médica. Nos Estados Unidos, estão liberando muito dinheiro para empregar os pares dentro do sistema, e por isso o movimento perdeu parte da sua força. Para mim, a cooptação tem suas raízes na falta de democracia. Se tivéssemos uma verdadeira democracia, teríamos igualdade de condições para todos os temas, para prevenir traumas, para prevenir a pobreza, os problemas com a família, para remediar as raízes dos problemas mentais. O que temos agora são pessoas com dificuldades com as emoções e problemas de saúde mental tratadas como consumidores por médicos, empresas de fármacos, hospitais e planos de saúde. A oportunidade para dar tratamento é a oportunidade para dar o produto, então é outro mercado.
Você considera que o movimento de pacientes está enfraquecido?
Por um lado, sim, porque falta independência, há dependência de dinheiro e de empregos. Por outro, o movimento tem mais poder, pois está representado, tem voz dentro de clínicas e hospitais e consegue empregar pares. Mas isso tem dois lados, perde força por conta da dinâmica de cooptação.
Quais as consequências disso?
Há um desequilíbrio entre pacientes e médicos. Os médicos sempre querem estar por cima. A cooptação pode negar a força e ameaçar os pacientes. Nós temos, por exemplo, a ideia de santuários, fora dos hospitais, onde não há profissionais, só pacientes e pessoas da comunidade. Os doutores enxergam estes lugares como ameaça. A cooptação é ruim porque exclui os pacientes das decisões. Todas as pessoas têm sofrimento emocional e necessitam de ajuda, paciência, escuta, apoio. É preciso acabar com o uso da força e usar uma perspectiva de apoio. E também barrar a influência do dinheiro, a corrupção dos serviços, oferecer alternativas aos medicamentos, apoiar famílias e criar programas de prevenção. E dar voz aos pacientes, que são os mais afetados. Precisamos dar poder e voz a eles para tomar decisões, além de criar políticas que se expressem em programas.
Quem promove a cooptação?
Quando criamos um grupo de apoio mútuo de “ouvidores de vozes”, estamos falando do fim do uso de medicamentos. Quando esses grupos entram no sistema, falam sobre vozes, mas não sobre acabar com medicamentos: esse é um exemplo de cooptação. Essa dinâmica existe em qualquer momento em que se enfrenta o poder institucional. É compreensível que eu prefira pacientes e seus pares trabalhando no sistema, porque é uma oportunidade para conhecê-los. Eu prefiro que haja grupos de “ouvidores de vozes” do que não haja nenhum, mas a estratégia precisa ser mais ampla para resolver o problema. Seguimos enfrentando alguns tabus. Um deles é retirar medicamentos, que é muito ameaçador para o sistema; o outro é que o diagnóstico não serve, não é necessário; outro diz respeito à perspectiva dos direitos humanos de acabar com o uso da força e violência nos hospitais. Esses três “pilares” são totalmente ameaçadores ao sistema, aos hospitais, às empresas farmacêuticas, aos médicos, mas são eles que promovem violência e opressão. Essa violência vem através do uso de medicamentos, do diagnóstico, que é um insulto e estigma. Alguns países não usam o diagnóstico “esquizofrênico”. Há uma grande luta dentro da psiquiatria sobre usar ou não usar essa classificação porque o estigma afeta muito as pessoas. Dizer que alguém é esquizofrênico é uma forma de matar socialmente e simbolicamente.
Que argumentos são válidos para convencer a família de um paciente que decide experimentar outro tipo de terapia, que não a convencional?
É muito importante entender que pacientes são oprimidos e as famílias também. As famílias também sofrem muito. Quando uma pessoa vai ao hospital e recebe o diagnóstico, isso afeta a família, que também necessita de ajuda e apoio. O sistema usa a família como forma de controlar o paciente, afirmando a necessidade de tomar medicamentos e indicando que qualquer abstração é sintoma de enfermidade. Muitas famílias temem se sentirem culpadas pelo que acontece com o parente, então cria-se uma aliança entre famílias, psiquiatras e empresas de fármacos. Essa aliança defende que não é preciso fazer nenhuma mudança na vida, na sociedade e na família, só uma alteração química no corpo da pessoa. É muito difícil trabalhar com famílias sem dar a ideia de que não são culpados, mas é possível.
Sob o ponto de vista econômico, que tipo de terapia despende mais recursos?
As empresas dizem que é menos custoso dar medicamento, mas a pessoa medicada não trabalha. Em dois, três, cinco anos, estará recebendo um benefício de invalidez. Os comprimidos talvez ofereçam algo em curto prazo, mas em longo prazo é mais custoso. Eu acredito na perspectiva do “Diálogo aberto”: prevenir os problemas, oferecer recuperação para que a pessoa possa estar em comunidade, continuar trabalhando e não receber benefício. Com terapia se pode prevenir problemas futuros. Eu aposto na ideia de desenvolvimento comunitário: não quero melhorar o sistema de saúde mental, quero melhorar a comunidade e a sociedade. Então o problema está na pobreza, no racismo. Todas essas violências estão conectadas. Não precisamos de mais terapeutas ou mais médicos, precisamos mais capacidade de apoio mútuo comunitário. Existe apoio mútuo dentro da igreja, da umbanda, das comunidades indígenas, da família. Precisamos fortalecer esse apoio com recursos. Pessoas estão sob estresse, porque estão na pobreza e não têm recursos. Por por isso me interesso tanto por saúde mental, porque envolve todos os assuntos dos seres humanos e todos os problemas da sociedade.
Pode dar um exemplo?
As pessoas têm soluções, mas não têm o poder, em um sistema capitalista que está sempre atacando a democracia. Eu não sei exatamente o que está acontecendo no Brasil, mas nos Estados Unidos é possível comprar votos, o que favorece a corrupção. Necessitamos mudar isso para que as pessoas comuns tenham voz no processo da democracia. O poder está sob a ganância, e quando se usa ganância como administrar a saúde é um desastre, porque quanto mais há enfermidades, mais crescem os mercados, mais as empresas têm incentivo para piorar a enfermidade e não interessa o que está acontecendo com os pacientes. A solução dos problemas da saúde mental é ouvir a voz dos pacientes, ouvir e respeitar a voz do outro é a essência da democracia.
O que você acha da proposta de divisão clínica da Sociedade Britânica de Psicologia?
É uma alternativa de diagnóstico que está mais orientado pela história e pela vida da pessoa. E também no trauma. A proposta é boa, mas ainda não vai até as raízes do problema. Qualquer coisa que enfrente o trauma, ouvindo as vozes e interessada na história da pessoa, é muito melhor do que temos agora. O que temos agora é o diagnóstico, que é uma forma de insultar, é uma forma de não escutar. O raciocínio é: “Eu vou ouvir e escutar só até ter o suficiente para dar um diagnóstico ou para colocar você em uma categoria”. Nós já sabemos que, se para ter uma relação de amizade eu te coloco em uma categoria, isso vai destruir nossa relação. Então, temos que enfrentar o outro como outro e estar aberto a sua própria história, e desenvolver uma relação de confiança. Isso é essencial para a recuperação.
Qual memória você guarda de sua luta política?
Eu me lembro de estar com uma pessoa com quem trabalhava e ela relatar que queria se suicidar. Ela dizia: “Eu sou uma poeta horrível, sou um fracasso como mãe”. Lembro de como eu tinha medo, que tentava dizer a ela que era uma pessoa boa, muito capaz, e isso a fazia se sentir pior. Eu percebi então o que estava fazendo: eu não a estava escutando, então mudei a estratégia e perguntei porque se via como uma poeta ruim. “Porque meus poemas são horríveis!”, respondeu. “Por que são horríveis”, perguntei. “Porque eu publiquei sem revisar” Eu finalmente escutei a verdade que estava por baixo do que ela dizia. Quando escutei e respeitei o que dizia, pude falar sobre ela porque havia uma conexão comigo. Quando eu somente tentava falar que era boa poeta e boa mãe, eu não estava conectado com ela, estava negando a experiência dela; minha fala não estava relacionada com ela, estava relacionada com meu temor de não controlá-la para não cometesse o suicídio. Eu aprendi muito nesse momento. Aprendi que as pessoas sabem mais que eu e meu papel não é controlar, e escutar e acompanhar a pessoa.