O poder do mindfulness fica limitado se descontextualizado dos ensinamentos éticos.
Tim Lomas/Psychology Today
in Mindmatters magazine 4
Dado o crescente interesse suscitado pelo mindfulness em todo o mundo, há uma questão que se impõe colocar: é o mindfulness ético? Da forma como a atenção plena é frequentemente ensinada e praticada no Ocidente, a resposta parece ser “não necessariamente”. O que é uma pena.
O conceito de mindfulness deriva de termo páli sati, o qual descreve essencialmente uma forma de atenção consciente ao momento presente. No entanto, no seu contexto original budista, sati aparece associado a uma ideia e a uma prática mais amplas no sentido de ajudar o indivíduo a libertar-se do sofrimento. O que inclui ensinamentos fundamentais sobre a importância do comportamento ético. Tenha-se em consideração que três aspectos do ‘Nobre Caminho Óctuplo’ – os ensinamentos centrais do Buda sobre como minorar o sofrimento – são especificamente relacionados com a ética/moral: fala correcta, acção correcta e forma de vida correcta, os quais aparecem depois desenvolvidos em vários preceitos para explicar o que consiste cada um deles. Por exemplo, ‘Os Cinco Preceitos’ (pañca-sīla), o mais conhecido enquadramento ético no cânon Páli, incentiva a abstenção de: causar sofrimento a seres vivos, tomar o que não é dado, má conduta relativamente aos prazeres sensoriais, discurso falso e estados não conscientes em relação ao consumo de álcool e drogas.
Sobre a importância da ética
Naturalmente que a questão que se coloca é porque é que a ética é tão importante no budismo? Para começar, porque se trata do pilar onde assenta qualquer sociedade civilizada. Porém, o budismo apresenta ainda um argumento mais profundo (e talvez até mais persuasivo): a acção ética serve também ao bem-estar do seu actor. Este insight assenta na noção de karma, conceito frequentemente mal interpretado como pressuposto de que tudo o que acontece a alguém ser resultado de acções passadas. Trata-se de uma leitura equivocada deste conceito, pelo menos segundo a perspectiva de mestres como Buddhaghosa, o qual argumenta que os acontecimentos se dão pelas mais variadas razões, uns com origem em acções passadas, outros causados por diferentes factores. Ainda assim, Buddhaghosa defende que qualquer acção no presente terá reflexos no futuro. No essencial, portanto, o ensinamento de karma sustenta que acções hábeis (éticas) geram futuros estados mentais positivos, enquanto que acções não hábeis conduzem a estados mentais negativos. Assim, por muito que o mindfulness seja útil para ajudar as pessoas a lidar com pensamentos e emoções negativas, o budismo sugere que é mais provável experienciar tais efeitos se as acções forem éticas.
A perda da referência ética
Muita gente no Ocidente encontra-se infelizmente envolvida numa forma de mindfulness secular descontextualizado, conforme pode ser observado em variadíssimas formas contemporâneas de intervenções baseadas em mindfulness. Isto não significa que tais intervenções não tenham o seu valor ou que as pessoas envolvidas não sejam elas, em si, éticas. No entanto, ao retirar o mindfulness do seu contexto original budista – o qual aponta para a transformação e libertação do indivíduo – o poder de tais programas é necessariamente mais limitado. Esta questão tem sido reconhecida pelo próprio Jon Kabat-Zinn, apesar (ou por causa) do seu papel-chave no trazer do mindfulness para o Ocidente, ao desenvolver formas seculares para a sua introdução, nomeadamente através do seu programa MBSR (redução de stress baseado em mindfulness). Sem colocar obviamente em causa o valor de tais programas, o próprio Kabat-Zinn comentou que “a pressa em definir mindfulness dentro da psicologia ocidental pode acabar por descaracterizá-lo em questões fundamentais”, existindo, consequentemente, “um potencial para que algo valioso se perca”.
Recuperar a dimensão ética
Assim, por mais valioso que seja o mindfulness-sati, ele será mais benéfico a partir de uma valorização da ética. De facto, no cânon Pāli sati não é o único ‘tipo’ de mindfulness, conforme tenho vindo a explorar em alguns dos meus ensaios mais recentes (o meu projecto sobre ‘termos intraduzíveis’ tem mostrado a boa saúde dos conceitos páli/sânscrito, os quais podem ser importantes para as pessoas no Ocidente). Designadamente, existe um termo conceptualmente semelhante referente à atenção consciente, mas que inclui especificamente considerações sobre ética, nomeadamente, appamada. Na verdade, tal não deve ser visto como uma forma distinta de mindfulness, distinta de sati. Trata-se, antes, de uma qualidade com a qual se pode tentar ampliar sati – uma espécie de simbiose sati-appamada. Assim, o que é que appamada traz ao mindfulness? Considere-se a multiplicidade existente de traduções do termo para inglês: sincero (Müller, 1881), cuidado vigilante (Soeng, 2006), vigilância incessante (Thera, 1941), diligência (Peacock, 2014), atenção cuidadosa (Nikaya, 2008) e ‘vigilância moral’ (Rao, 2007). Assim, essencialmente, podemos definir appamada como consciência de ethos imbuída de ética.
Com o cultivar de appamada, o praticante vai para além da consciência da experiência sem julgamentos (como acontece no sati), para reflectir e mesmo julgar (com compaixão) se os seus actos são hábeis (de acordo com os preceitos). Ao fazê-lo, a pessoa é considerada como estando a “acelerar” o seu desenvolvimento psico-espiritual, atingindo estados ainda mais elevados de bem-estar. E, claro, as suas acções serão também benéficas para aqueles à sua volta. Portanto, por mais benéfico que possa ser o mindfulness, pense-se o quanto mais poderoso poderá ser se lhe juntarmos a dimensão ética. ●
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Procuro praticar os dois; mas acho que veicular o mindfulness sem dimensão ética é melhor para vencer a resistência que a linguagem religiosa cria. O próprio mindfulness torna as pessoas mais conscientes, dentro de quaisquer valores éticos que tenham.
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