Como funciona a mente

O que é essa coisa a que chamamos ‘self’? Segundo a psicologia budista, trata-se de uma construção do indivíduo. Gaylon Ferguson, antropólogo e académico, especialista no estudo das religiões, desconstrói os cinco passos associados ao processo de desenvolvimento do ego.

Por Gaylon Ferguson/Lion’s Roar
in Mindmatters magazine 4

William James, um dos pais da psicologia moderna, escreveu  em 1890 que a nossa primeira experiência do mundo é de uma “enorme exuberante confusão”. Embora a investigação produzida posteriormente mostre que os recém-nascidos possuem mais habilidade para dar sentido  às suas experiências do que o psicólogo americano acreditava, mesmo na idade adulta a confusão quanto ao modo como a nossa mente funciona permanece. É claro que todos estamos cientes de possuir uma mente e de ter várias experiências psicológicas, mas quem somos nós, verdadeiramente? Como é que a mente funciona para moldar a nossa experiência do mundo, do nosso sentido de experienciar o facto de estarmos vivos? Como abrandar por momentos para conseguir observar com clareza o célere e deslumbrante desenrolar da mente e do mundo?

   A psicologia budista começa por examinar a nossa experiência do dia-a-dia, de clareza e confusão, sobre a nossa mente e o nosso self. O primeiro mapa budista sobre o sentido de self mostra cinco passos fundamentais no desenvolvimento do processo de ego. A palavra em sânscrito, skandhas, significa literalmente “agregados”.

   Estes agregados não são propriamente uma compilação de partículas elementares da existência, enquanto recolha de eventos físicos e mentais. Na verdade, a mente e o corpo – o mental e o físico – são os dois principais tipos de fenómenos. Experienciamo-nos, a nós, enquanto seres encarnados num mundo que contém outras formas físicas, como árvores e carros. Movimentamo-nos num mundo que conta também com outros seres vivos, com experiências mentais próprias de sofrimento e felicidade.

   Os cinco agregados que constituem a base do nosso ser são: forma material, sensação, percepção, formação mental e consciência. Vejamos agora como cada um deles constrói o nosso sentido de self.

Forma material

   O primeiro agregado é a forma, a qual compreende tanto o nosso corpo físico como toda a matéria do mundo exterior. Como é que ela faz parte da nossa experiência mental?

A forma constitui a base do nosso ser, o sentido fundamental de que “nós somos” este corpo, o qual está de alguma forma separado da mente. Esta separação constitui a distinção primária da nossa experiência ordinária. O meu corpo possui peso que pode ser medido numa balança quando me peso de manhã, ao passo que os meus pensamentos são constituídos por uma substância indistinta. São importantes, principalmente para mim, mas não são materiais. O meu corpo e a minha mente emergem em conjunto, mas em tensão, um com o outro.

  Como em qualquer relação dualista, o corpo e a mente podem caminhar juntos harmoniosamente durante algum tempo, apreciando a companhia e a amizade um do outro; mas também podem cair em profundas divergências, em grandes disputas e separações extremadas. Quando tudo corre bem, o meu corpo coopera com aquilo que a minha mente parece desejar: “embora lá tomar o pequeno-almoço, sim?”. Mas, por vezes, o meu corpo revolta-se, desenvolvendo uma dor no joelho exactamente na altura em que eu quero ir correr ou adormecendo durante uma reunião importante.

   O corpo e a mente são como dois irmãos briguentos mas inseparáveis. Se estivermos fisicamente cansados ou com fome, as nossas experiências e julgamentos sobre os outros podem ser “temperados” pela fadiga ou por baixos índices de açúcar. Um estudo recente mostrou que os juízes em Israel concediam liberdade condicional em 65% dos casos julgados imediatamente a seguir a uma refeição, mas com os números a caírem para quase zero nos casos ouvidos imediatamente antes de um período de recesso ou no final do dia. Portanto, o primeiro insight sobre o funcionamento da nossa mente é o entendimento de que a experiência mental requer também ela uma atenção particular ao agregado da forma material.

Sensação

   A fase seguinte da emergência do self chama-se sensação. Isto é, o nosso sentido elementar de gostar, não gostar ou de indiferença em relação àquilo que percepcionamos.

   Que sensação temos sobre as coisas e os seres com que nos vamos deparando? Sentimos atracção ou ameaça? Vontade de aproximação ou repulsa? Estas sensações intuitivas – que não são exactamente emoções – constituem a base para um subsequente impulso de aproximação ou de afastamento em relação àquilo que estamos a experienciar. “Uma camisola quente no inverno? Sim, gosto muito”. “Muitas camadas de roupa em pleno calor do meio-dia? “É mau. Quero despir alguma dessa roupa”. Gostar, não gostar, neutro, atracção, repulsa, neutralidade – à volta destas sensações gravitamos todo o dia e toda a noite. Pesadelos e devaneios, todos têm o toque das sensações.

   Estas constituem, geralmente, o pano de fundo de todas as nossas experiências, os diferentes “paladares” dos nossos encontros e permutas com o nosso mundo. Isto não constitui uma negação sobre a existência de seres benévolos e malévolos, aqueles que nos desejam bem e os que nos querem magoar. Tal como diz o ditado, “mesmo os paranóicos têm inimigos reais”.

   Atente-se ao facto de que essas sensações constituem a “nossa” experiência mental. Quando sentimos o sabor deliciosos de uma maçã, o que estamos a provar em parte é o deleite da nossa própria mente. O agregado da sensação visa este aspecto mental elementar de todas as nossas experiências. A mente acompanha toda e qualquer experiência pessoal. Embora isto possa parecer óbvio à primeira vista, ao ponto de quase nem merecer ser mencionado, constitui no entanto o principal insight das tradições contemplativas. As nossas experiências agradáveis ou desagradáveis sobre quem ou o quê possuem sempre uma faceta interior. A isso chamamos “mente”.

Percepção

   A fase seguinte do desenvolvimento do self chama-se percepção. Trata-se de um discernimento mais elaborado do que a simples avaliação genérica de sensação: positivo, negativo ou neutro. “Gosto muito, não só do calor fornecido por esta nova camisola de lã, mas também da sua cor azul e do seu toque macio.” Estas percepções sobre as grandes qualidades da nova camisola têm todas o dedo do “pré-conceito”. O que fizemos foi um pré-julgamento sobre as suas boas qualidades baseados nas nossas sensações anteriores.

   Note-se que todos estes julgamentos perceptivos partem do um ponto de vista pessoal, de uma perspectiva gradualmente mais solidificada do “eu” (a experiência de uma traça sobre a mesma camisola seria necessariamente diferente). Percepciono tratar-se de “uma óptima camisola azul” porque, pelo menos neste momento, ela parece estar “do meu lado”, do lado do meu “eu” central. Existe uma sensação à partida de que a camisola vai satisfazer-me e, por isso, fixo-me na idéia de possuí-la. É como se ao agarrar-me com força à camisola (que podemos substituir por qualquer outra coisa), esteja a agarrar-me também a um self.

   O egocentrismo deste percepcionar manifesta-se na forma de recompensa psicológica: de que esta camisola faz-me bem, de que estou melhor com ela do que estaria sem ela e muito mais forte num mundo em rápida transformação.

   É como se apesar do agregado da percepção houvesse uma antiga operadora de PBX a controlar as nossas chamadas telefónicas segundo um único critério: a meu favor ou contra mim? Como resultado, a nossa experiência do mundo chega-nos convenientemente embrulhada naquilo que percepcionamos como coisas que são boas para nós e coisas que o não são. E o que há de errado nisso?

   O problema é que a nossa operadora telefónica age cheia de pressa e com grande ansiedade, mal fazendo uma pausa para perguntar o nome de quem está a ligar e a natureza da chamada. Ela rapidamente – demasiado rapidamente – decide passar algumas chamadas como “amigas” e recusar o acesso a outras por “inimigas”. O que até seria extremamente útil e eficaz se ela fosse precisa nesse julgamento.

   Infelizmente, e com demasiada frequência, comete uma série de erros graves e grotescos, partindo de suposições assentes em pré-julgamentos baseados em padrões de hábito: “ah! lembro-me de si pelo tom agradável da sua voz, sr. Smith, o senhor é um bom amigo, vou passar-lhe a chamada imediatamente”; ou então “não, não me lembro de si, sr. Jones, nunca ouvi falar de si, mas a sua voz lembra-me uma chamada muito desagradável ocorrida ontem, portanto, desapareça, adeus!” Como podemos ver por esta analogia, a percepção acrescenta nomes e rótulos de “reconhecimento” baseados em experiências do passado. Também podemos ver impulsos correspondentes desenvolvendo-se em formas de retenção ou de afastamento da nossa experiência.

A nossa hiperactiva operadora perceptual falha também por não levar em consideração o factor crucial da mudança. Já todos tivemos a experiência de descobrir que alguém de quem estávamos desconfiados ontem acabar por se revelar um amigo e aliado amanhã – e vice-versa.

São estas descobertas animadoras de boas novidade que são bloqueadas pela activação da percepção do passado.

Formação mental

   O processo de desenvolvimento do ego fortalece-se ainda mais no quarto agregado: formação mental.

   Com a formação mental ou conceptualização, temos agora um nome para o tipo de pessoa que representa para nós o sr. Smith (bom, agradável) e também uma série de adjectivos para caracterizar o sr. Jones (mau, desagradável). Estamos no domínio dos enredos e das ideologias. Trata-se do aspecto dualista da mente a que chamamos “falso intelecto” – o uso de categorias conceptuais fixas como forma de identificação de nós e dos outros.

   Neste campo de insight distorcido, começamos por habilmente nos iludirmos a nós próprios baseados em apreciações apressadas, intuições pouco esclarecidas ou em informação do passado: “ah! agora percebo. Eu sou ‘este tipo’ de pessoa e tu és ‘aquele tipo’ de pessoa. Como tal, é impossível sermos amigos. Adeus!”

   Nesta fase, já desenvolvemos interpretações sofisticadas sobre nós e a nossa experiência, que vão muito além da sensação primária de “sim” ou “não”. Esta é a dimensão das explanações psicológicas: “eu sou ‘este tipo’ de pessoa porque, no passado, aconteceu ‘aquilo’”.

   Uma vez mais, não se trata de negar o peso que causas e condições anteriores têm no moldar do ser em que nos tornámos. Porém, existe a tentação para transformar a água fluente do novo insight em gelo solidificado de ideias mentais fixas. Digo, repetidamente, para comigo – e para quem me quiser ouvir – antigas histórias de quem sou, de quem fui e no que me transformei (assim como também quem és tu e porque és assim). Vivemos ampla, aberta e humildemente o desconhecimento do futuro, sem nos refugiarmos num emaranhado de conceitos.

Consciência

   Finalmente, chegamos à descoberta do quinto agregado: a consciência. A dinâmica acumulada da divisão inicial mente-corpo, o sentido positivo ou negativo sobre os outros e os rótulos com que nos caracterizamos, a nós e ao nosso mundo, culminam numa intensa exposição de emoções e pensamentos.

   Trata-se de uma torrente de consciência bastante familiar experienciada no dia-a-dia: o nosso fluxo mental. A psicologia budista divide-o em oito estados diferentes de consciência. Acrescentando aos sentidos mais comuns de consciência – visão, audição, olfacto, paladar e tacto -, um sexto sentido: a mente consciente. Assim como a consciência visual nota a visão e a audição responde aos sons, esta sexta consciência está presente aos pensamentos e emoções. Tal como um hábil montador de cinema que sincroniza som e imagem, ela sintetiza e integra as experiências das outras consciências num todo coerente.

   Subjacente a estes seis sentidos de consciência, podemos ainda vislumbrar outros dois: uma torrente tumultuosa subconsciente de emoções conflituosas e de ansiedade (o klesha, ou “obscurecimento”), e uma vaga consciência nebulosa (o alaya ou “armazém de consciência”) sobre a qual nos voltamos ocasionalmente chamando-a de “eu”. Estas torrentes subterrâneas fervilham por vezes com ressentimentos antigos, ciúmes, obsessões e estados extremos de negação.

O agregado da consciência completa o desenvolvimento de um sentido iludido de ego. Agora sentimo-nos separados, independentes e unitários, mesmo que existam fortes evidências do contrário.

   Não vivemos à parte do nosso meio ambiente. Se assim não fosse, como poderíamos respirar, comer, beber, manter-nos vivos? De onde vem o idioma que falamos, lemos e escrevemos? Ninguém é auto-produzido e independente, tal como nos é recordado pela presença dos nossos pais. E longe de sermos seres isolados e unitários, emergimos como uma colecção dinâmica de acontecimentos físicos e mentais, onde se inclui respirar, dormir, sonhar e andar. Somos um misto de emocional, fisiológico, esquelético e psicológico, e embora estes diferentes aspectos possam entrar ocasionalmente em conflito entre si, também cooperam e se harmonizam.

Os agregados

   O insight sobre o nosso próprio processo psicológico – sobre como funciona a nossa mente – não é um fim em si mesmo. A tradição não oferece esse ensinamento como se ele fosse um mero conhecimento intelectual ou informativo. Somos encorajados a usar esse mapa para ficarmos mais familiarizados, através de uma experiência directa, com os processos a que chamamos de “eu” e “minha mente”.

   O desenvolvimento de uma relação harmoniosa com nós mesmos é um elemento central do caminho budista do despertar. Os ensinamentos dos cinco agregados são um convite a uma experiência mais profunda e íntima connosco. O que é que encontramos quando nos viramos para a nossa experiência de corpo e mente? Não se trata de um dogma – a questão não é confirmar se o mapa é preciso ou “correcto”. Uma parte da questão está em notar que o mapa não é o território, nem nunca poderá sê-lo. (Imagine-se um mapa do Canadá à escala 1:1; que utilidade poderia ter isso?) O convite aqui é para cada um estabelecer, como explorador, o seu terreno interior e exterior. Bon voyage.

   Ao envolvermo-nos nesta exploração psicológica, um dos melhores companheiros será um sentido de amabilidade em relação a nós e aos outros. Isto significa tomar estes cinco processos mentais não como sinais inerentes de fraqueza ou de insuficiência, mas como aspectos da nossa humanidade primordial. Ao cultivarmos a amabilidade experienciamos os agregados (e tudo aquilo que possa emergir no processo), acompanhado de um verdadeiro sentido de gratidão e apreço. Chegados aqui, sejamos mais concretos:

   Os skandhas apontam primeiro para a regeneração da cisão corpo-mente. Uma atenção cuidada ao corpo e à mente enquanto experiência do momento presente (e não apenas como uma boa ideia distante) constitui um bom começo. A tradição chama-a de “mindfulness do corpo”. Trata-se de um simples sentido de boas-vindas e de inclusão da experiência física presente (não exaltar ou denegrir o corpo, não o louvar nem o condenar). Isto é amabilidade mente-corpo.

   O mesmo se aplica aos outros agregados. Se conseguirmos sentir as sensações à medida que estas aparecem, sem rejeições nem fabulações sobre como é ‘certo’ sentir desta ou daquela maneira, elas vão poder emergir como sublinhados luminosos da nossa condição humana e do facto de estarmos vivos. Não há necessidade de realizá-las ou reprimi-las. Trata-se de um espaço de liberdade. Ultrapassando desejos e fixações, permitimos que as emoções assomam, se façam presente e partam. Será um entendimento do borbulhar da vida como emoções coloridas, como experiências do coração. Uma fruição da nossa humanidade.

   Do mesmo modo, podemos olhar para os nossos pensamentos e ideias como formas de discernimento. Se notarmos os nossos pensamentos enquanto pensamentos, em vez de os confundir com a realidade, eles tornar-se-ão amigos e aliados, companheiros de jornada. Em vez de confinarmos a nossa consciência de percepção dos sentidos em limitadas caixas de “a meu favor” ou “contra mim”, podemos abrir-nos a uma valorização mais alargada de ver e escutar. Podemos saborear a vastidão do nosso mundo.

   Nesta jornada, percebemos que tanto a claridade como a confusão estão entrelaçadas na experiência mental do dia-a-dia. Os agregados iluminam as cinco vertentes do processo de fixação e de posse da mente, envolvidos numa luta perdida do ego contra o mundo. E, no entanto, os mesmos eventos mentais podem constituir a base de um cessar-fogo, a porta de entrada para uma paz luminosa e livre de conflitos.

   Cada momento de desdobrar de experiências constitui uma oportunidade para dar as boas-vindas à nossa mente e às emoções no nosso mundo. A chave para trabalhar com a mente, para perceber o seu processo, encontra-se internamente no calor da própria amizade. Não é necessário um novo e hipermelhorado corpo-mente. O verdadeiro desafio está em fazer amizade com uma mente e um corpo que já são nossos.

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