A pesada herança da civilização

É possível estimar o peso da tecnosfera — isto é, tudo o que os seres humanos já construíram — para avaliar o seu impacto ambiental. Uma equipa internacional de cientistas chegou a um número: 30 biliões de toneladas

Por Virgílio Azevedo
in Expresso

Tecnosfera é a designação geológica que se dá a tudo o que foi construído ou gerado pela atividade humana ao longo da sua existência: casas, edifícios, infraestruturas, florestas plantadas, pastos semeados, culturas agrícolas, barragens, fábricas, máquinas, ferramentas, eletrodomésticos, roupa, objetos de consumo, lixo. Um dia, com o passar dos anos, séculos, milénios, eras, todos estes testemunhos das realizações da civilização humana vão acabar enterrados no solo e no subsolo da Terra, fazendo parte integrante da sua geologia.

Em alguns casos, o processo é muito mais rápido do que seria de esperar na escala geológica: em 2014, os cientistas encontraram numa praia do Havai o primeiro exemplar de uma nova formação rochosa a que deram o nome de plastiglomerado, uma fusão de resíduos de plástico com lavas, conchas, madeira, sedimentos e areias.

Tecnosfera pesa 30 biliões de toneladas

Agora, uma equipa internacional de investigadores liderada por Jan Zalasiewicz, do Departamento de Geologia da Universidade de Leicester, Reino Unido (ver entrevista), resolveu apostar numa tarefa que parecia impossível: calcular a massa da tecnosfera física da Terra e a área por ela ocupada. O estudo foi publicado na revista científica The Anthropocene Review e revela que o material construído e gerado pela civilização humana pesa aproximadamente 30 biliões de toneladas, isto é, 30 seguido de 12 zeros, ocupando uma área total de quase 82 milhões de quilómetros quadrados, o equivalente à soma das superfícies da Europa, África e América. Se toda a superfície terrestre do nosso planeta fosse coberta por estes materiais, seria o equivalente a 50 kg por metro quadrado.

Mas para quê perder tempo com esta aparente curiosidade, a fazer cálculos tão complexos que envolveram o trabalho de investigadores do Reino Unido, Espanha, França, Noruega, Alemanha, Suíça, Brasil, Quénia, Austrália, Canadá e EUA? Por várias razões de peso, literalmente. Assim, o estudo pormenoriza os valores para cada um dos componentes principais da tecnosfera, o que significa que permite saber qual é a faceta da atividade humana que tem mais impacto sobre a Terra. Em termos de massa são, em posição destacada, as áreas urbanas, enquanto na área ocupada são, de longe, as pastagens semeadas.

4200 toneladas para cada humano sobreviver

Esta investigação internacional permite também perceber que a vida humana é sustentada por uma tecnosfera com uma massa 100 mil vezes maior do que a biomassa humana, estimada pelos cientistas em cerca de 300 milhões de toneladas, o que dá uma média de 42 kg por cada um dos 7,2 mil milhões de habitantes da Terra. Dito de outra forma, para sobreviver, cada ser humano precisa em média de 100 mil vezes mais recursos materiais — 4.200.000 kg ou 4200 toneladas — do que o seu próprio peso. Só os plásticos produzidos por ano pesam tanto como a biomassa humana.

E nesta conta não entra a chamada tecnosfera aérea, que contém um bilião de toneladas de dióxido de carbono (CO2) criados pela atividade humana. Se este CO2 fosse espalhado por igual ao longo de toda a superfície da Terra, teria uma espessura aproximada de um metro. E o seu peso equivale a 150 mil cópias da Grande Pirâmide de Gizé, no Egito. Como refere o estudo internacional, “desde o lançamento dos primeiros objetos para o espaço, em 1957, a tecnosfera estendeu-se para lá da atmosfera na forma de satélites e lixo espacial que orbitam a Terra, bem como naves e sondas espaciais por todo o lado”.

408A tecnosfera subterrânea — minas, depósitos, furos e outras construções — também está fora dos 30 biliões de toneladas, simplesmente “porque é difícil de quantificar”, salienta o mesmo estudo. Os componentes da tecnosfera considerados nas estimativas foram as áreas urbanas, as construções rurais, as pastagens semeadas, as culturas agrícolas, o fundo do mar afetado pela pesca de arrasto e pelas atividades mineiras, o uso da terra e o solo atingido pela erosão, as estradas rurais, a floresta plantada, os reservatórios de água e barragens e os caminhos de ferro.

A era dos tecnofósseis

A equipa liderada por Jan Zalasiewicz espera agora que novas investigações possam pormenorizar mais estas estimativas, porque a diversidade da tecnosfera é gigantesca. O estudo refere apenas dois exemplos, sem referir massas: desde 1983, quando começaram a ser comercializados, foram fabricados 6,8 mil milhões de telemóveis; e estão registados 130 milhões de títulos individuais de livros desde que a imprensa foi inventada no século XV.

Dentro de milhões de anos vão transformar-se nos chamados tecnofósseis, restos fossilizados de dispositivos tecnológicos e de objetos feitos pelo ser humano. O estudo da revista The Anthropocene Review explica que “O número total de artefactos com potencial tecnofóssil é desconhecido, mas deverá ser igual ou superior à biodiversidade total existente na Terra”, isto é, ao número de organismos diferentes que existem nos ecossistemas. A última estimativa dos cientistas (maio de 2016) aponta para um bilião de espécies.

Três perguntas a
JAN ZALASIEWICZ
Professor e investigador de Paleobiologia
no Departamento de Geologia da Universidade de Leicester (Reino Unido)

410 (Jan Zalasiewicz)

As conclusões do estudo que liderou podem ser usadas para fundamentar novas políticas do ambiente a nível nacional e internacional, em especial nos programas das Nações Unidas?
Talvez, mas esse não é o meu domínio de investigação. Como qualquer política deve ser, idealmente, baseada na evidência científica, este tipo de estudos globais, ao colocarem o impacto da atividade humana numa perspetiva objetiva e mensurável à escala planetária, deve dar certamente algum enquadramento para a reflexão e o debate dos problemas ambientais.

Os resultados da investigação reforçam a tese da que está a emergir uma nova época geológica, o Antropoceno?
Seguramente que há pelo menos uma ligação indireta à questão do Antropoceno, no sentido que fornece uma indicação da massa dos estratos geológicos (camadas) de rocha sedimentar ou solo que se irão formar e preservar no futuro distante na Terra. Para os 30 biliões de toneladas estimados para a massa da tecnosfera, uma parte já está a ser convertida em estratos geológicos. Mas a outra, ainda hoje usada na atividade humana — os nossos solos e estruturas urbanas, por exemplo —, será muito mais tarde depositada para formar diretamente estratos geológicos ou ser sujeita a erosão e transformada em sedimentos que, de algum modo, deverão refletir as modificações feitas pela atividade humana. E a diversidade de tecnofósseis (restos fossilizados de objetos tecnológicos produzidos pelos humanos, como computadores, tablets, smartphones e outros dispositivos eletrónicos) vai dar-nos uma ideia da futura identidade de cada estrato geológico. Os cientistas num futuro distante ficarão muito intrigados e terão com certeza muito trabalho pela frente!

O estudo dá apenas dois exemplos mais concretos em termos de números: os 6,8 mil milhões de telemóveis fabricados até agora e os 130 milhões de títulos individuais de livros lançados desde que foi inventada a imprensa, no século XV. Não há estimativas do número de automóveis, barcos, aviões, televisões, computadores, bicicletas, fábricas ou minas?
Seria fantástico se todas essas estimativas fossem feitas, mas até agora realizaram-se muito poucos estudos sobre o tema. Por isso esperamos que o nosso estudo encoraje mais investigações no futuro, de modo a que seja possível encontrar boas estimativas sobre o número de “espécies” nas categorias que acabou de mencionar.

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