Ficar preso à dor e à perda deixa-nos mergulhados em ansiedade, o que perpetua os problemas. O mindfulness pode ajudar a mudar a forma como nos relacionamos com aquilo que achamos limitador na nossa vida.
Por Patricia Rockman | Ryoji Ikeda (instalação)
in Mindful | 25 de julho de 2016 ver artigo original
“Penso, logo sou”, não significa que eu sou os meus pensamentos. Embora Descartes acreditasse que “Se eu penso, então devo existir…”, outros filósofos destacaram, posteriormente, a possibilidade dos pensamentos poderem ter origem noutro lugar (embora não se saiba bem que outro lugar seja esse), portanto, tudo o que podemos dizer com certeza é que os pensamentos existem. Se não somos os nossos pensamentos (o que constitui uma ideia terrível para uns e uma bênção para outros), o que somos nós então? Há séculos que temos vindo a tentar responder à questão do que significa ser humano.
Algumas ideias sobre o que é ser um mamífero senciente num mundo cada vez mais secular podem ser encontradas na psicologia contemplativa ou na terapia cognitivo-comportamental (TCC). A primeira descreve-nos como um “amontoado” ou um agregado de corpo (forma) e sensações (o tom da experiência antes de ter início o pensamento: agradável, desagradável, neutra) enquanto percepções (designação, memória), formações mentais (pensamentos, emoções) e consciência (definida enquanto contacto com os sentidos e os objetos da tomada de consciência); a TCC olha para nós enquanto composições de pensamentos, emoções, corpo e comportamento. Os pensamentos são, portanto, uma simples parte do conjunto do que é ser. A visão de ambos os modelos é que não somos entidades fixas, antes somos processos dinâmicos em fluxo permanentemente.
‘Eu’: fixo e em fluxo
Esta ideia, se levada demasiado longe, pode afastar-nos da realidade da nossa existência do dia-a-dia. Se não possuíssemos uma identidade fixa então quem é que vai fazer o jantar, conduzir o carro ou pintar o cabelo? Uma outra maneira de navegar o eu é fazê-lo através do olhar da neurociência. Numa conferência que teve lugar recentemente em Toronto, Norman Farb, um neurocientista dedicado ao estudo da identidade humana e da emoção, com um interesse particular no mindfulness, falou sobre a necessidade de possuir ambos: quer um sentido de si estável, suportado pelo córtex pré-frontal medial, quer a faculdade de ajustamento e de consciência em relação às alterações momentâneas experimentadas envolvendo a ínsula. Faz sentido: demasiado eu e tornamo-nos inflexíveis; demasiada fluidez e ficamos caóticos. Para nos conseguirmos adaptar e funcionar precisamos dos dois.
Uma das razões porque sofremos deve-se ao facto de estarmos presos a uma ideia fixa do si-mesmo. Acreditamos em tudo o que pensamos, sobre os outros e sobre nós. Embora tal possa ter alguma utilidade sociobiológica e até possa ser essencial para navegar o nosso mundo interno e externo, também contribui frequentemente para a nossa infelicidade. Por exemplo, prendermo-nos à ideia da superioridade racial pode ter-nos ajudado a proteger a nossa tribo numa época em que alguém que fosse diferente representava uma ameaça; no entanto, tal como os recentes acontecimentos envolvendo o movimento “Black Lives Matter” demonstraram, o reconhecimento da interdependência em oposição ao acentuar das diferenças e consequentes abusos sobre os que são entendidos como “os outros” pode constituir o antídoto para combater os efeitos do preconceito.
Se estamos deprimidos, pensamos: “sou um depressivo” em vez de “a depressão, por vezes, toma conta de mim”. Se perdemos alguém que amamos por causa de uma separação, pensamos: “nunca mais vou voltar a amar” em vez de “estou em sofrimento, mas isto vai passar”. Se estudamos para ser médico, advogado ou psicólogo podemos ser atormentados pelo pensamento: “sou um incompetente” em vez de “estou a aprender e ainda não tenho experiência”. A forma como encaramos e reagimos às dificuldades limitam as nossas opções de como podemos responder de forma mais hábil às vicissitudes da vida. Neste percurso, todos recebemos a nossa parte de desarmonia, seja ela no início, no meio ou no fim da estrada (já não me recordo de quem foi que disse isto, mas tratava-se certamente de alguém muito sábio). Ter isto presente pode ajudar-nos a não tomarmos a dor e a perda como um fim do caminho. Tal não significa que não se sinta dor, mas apenas que ela não tem que resultar num buraco profundo de onde não conseguimos sair ou que seja ela a definir quem somos.
Como o mindfulness ajuda a atravessar os problemas
O mindfulness é um modelo de mente ou, se se preferir, do que é ser humano. Podemos pensar no mindfulness com um modelo conceptual, transmitindo os princípios e funcionalidades do que é ser pessoa. Enquanto modelo ajuda-nos a compreender elementos da experiência humana. O mindfulness é o mapa, não é o território. O território é a própria experiência (uma heresia para aqueles que o vêm como verdade). S. Shapiro criou uma forma de pensar sobre os potenciais mecanismos de mindfulness e como estes nos podem ajudar a não acrescentarmos mais sofrimento a tempos de dor que, inevitavelmente, sempre acontecem.
Esse modelo inclui uma vida marinha de intenções, atenções e atitudes, todos a flutuar num mar de consciência, que somos nós:
- A intenção permite-nos ser intencionais sobre onde posicionamos a nossa atenção, criando assim escolhas e desenvolvendo a capacidade para a mudar ou manter, de acordo com as necessidades. O mindfulness treina a atenção para que esta seja focada, aberta e receptiva.
- A atenção focada permite-nos interromper os pensamentos ruminantes negativos (“criticaram o meu trabalho, sou um fracasso”) através do levar da atenção para um objeto de consciência, como as sensações físicas da respiração ou outras sensações corporais. Não se trata de suprimir, mas antes de redirecionar. A monitoração da atenção, de forma aberta e receptiva, permite-nos captar pensamentos destrutivos, alterações de humor ou aumento da ansiedade, ainda numa primeira fase, antes que estes estados tomem conta da situação, permitindo-nos assim cuidar melhor de nós.
- Uma atitude de curiosidade e de bondade permite-nos encarar as dificuldades com um olhar de interesse sobre o que está a acontecer, em vez de tentarmos evitar ou afastar aquilo que não gostamos.
Stephen Hayes, um psicólogo conhecido pelo trabalho Terapia da Aceitação e Compromisso (ACT, sigla em inglês), aborda o poder de evasão no seu livro Get Out of Your Mind & Into Your Life. A sua força reside no facto dele funcionar muito bem no curto prazo. Tem o senão, no entanto, de perpetuar os problemas e limitar a nossa vida – se alguém que sofre de transtorno de ansiedade social for convidado para uma festa, o mais provável é que a sua decisão seja a de não ir. E o que é que acontece depois? Mesmo que ele se sinta envergonhado pela sua decisão, a ansiedade desvanece-se num estalar de dedos, o que é extraordinariamente reconfortante. Disponibilidade para se ter aquilo que não se deseja em vez de cedermos aos nossos padrões habituais de reatividade e evasão é fundamental como forma de nos abrirmos a novas possibilidades e para aprendermos de que é possível ter tolerância e gerir situações em alturas que preferíamos não o fazer. Enfrentar a dificuldade (leia-se exposição) permite que as emoções difíceis aflorem e passem.
O mindfulness ajuda-nos a aprender a desenvolver novas competências e a alterar perspectivas que se apresentam inúteis. Somos levados, frequentemente, a reavaliar cognitivamente aquilo que no início foi personificado (tudo é sobre mim), tal como alguém que se distrai enquanto dirige e bate na traseira do nosso carro, dando-nos um esticão. Algo semelhante aconteceu recentemente com o meu marido: uma mulher, com um bebé, bateu-lhe no carro, ficando desesperada, não só por causa do acidente como por achar que tinha falhado na sua tarefa mais importante… zelar pelo filho. Ficou incrédula por o meu marido não ter ficado minimamente zangado… “Oh! acho que ela não fez de propósito”, disse ele.
Aprendemos a ver que tudo o que acontece na vida é, de facto, impessoal. Um conceito que pode ser difícil de entender perante eventos que parecem muito pessoais, como uma doença grave, uma agressão policial ou outros tipos de violência. Quando somos apanhados pelo cancro, interrogamo-nos “porquê eu?” Talvez a pergunta a fazer seja “porque não eu?”. O cancro é uma doença que resulta de um número de variáveis: uma mistura entre genes, meio ambiente e, talvez, psicologia, mas sem ter nada a ver comigo enquanto pessoa. A violência é, também ela, o resultado de antecedentes biopsicossociais, que podem estar a acontecer num determinado dia e num determinado momento.
A natureza impessoal da experiência pode ser o grande nivelador. Isto não significa que não sintamos dor ou que coisas terríveis deixem de acontecer, mas reduzir o grau de personalização em relação a tudo o que nos acontece pode ajudar-nos a deixar de lado os preconceitos em relação aos outros e a nós próprios e a perceber como é realmente pouco aquilo que nos separa.
Na verdade, estamos todos no mesmo barco, flutuando neste mar de consciência, desde o nascimento à morte, dando significado à vida, tentando sobreviver, percebendo que nada é permanente. O mindfulness do corpo, dos pensamentos e das emoções ajuda-nos a ver que a impermanência é nossa aliada (até deixar de ser). Retira carga emocional a situações que podemos ter pensado que durariam para sempre – um estado de depressão, uma relação difícil, um emprego enfadonho. Mais cedo ou mais tarde tudo termina. Também aqui, a nossa dificuldade em interiorizar este facto pode ser, do ponto de vista da psicologia evolutiva, uma vantagem em relação à nossa sobrevivência. Pensar nas coisas como sendo permanentes pode ser motivador. Responder de forma mindful significa ter a habilidade de continuar em frente perante uma determinada situação colocada fora de controlo por emoções difíceis. Nas palavras do pioneiro do mindfulness, Jon Kabat-Zinn: “Não podemos parar as ondas, mas podemos aprender a surfar”.
Tradução de Raul C. Gonçalves