A reflexão meditativa, que Hannah Arendt chama de pensar em solidão, é a melhor farmacopeia para o fortalecimento da faculdade moral da pessoa.
Por Arash Arjomandi
in ABC
Porque é que em determinados contextos, pessoas comuns e mentalmente sãs, que não se caracterizam particularmente por uma maior dose de orgulho, ego ou inveja relativamente à sua média social, são capazes de cometer actos marcadamente imorais?
A melhor resposta a esta questão continua a ser aquela apresentada pela grande Hannah Arendt: é a irreflexão que faz com que cidadãos comuns cometam com frieza e sem remorsos, actos eticamente hediondos, contrários à dignidade humana.
Com efeito, tomando como base o diagnóstico de Arendt, é possível afirmar que o que leva pessoas comuns e, inclusive, cultas (ou até mesmo muito cultas), lúcidas e inteligentes, a serem maldosas e a cometer abusos – ou, no seu grau mais extremo, violência e crimes – é a falta de um hábito e de uma prática: o diálogo interior socrático, ou aquilo que hoje podemos denominar, com propriedade, de mindfulness.
A reflexão meditativa, a que Arendt chama de pensar em solidão, é a maior farmacopeia para o fortalecimento da faculdade moral da pessoa. Trata-se do célebre diálogo socrático com o seu próprio daemon – a voz interior ou alma. Um tipo de reflexão que, tal como foi cultivado por muitos filósofos no Ocidente, deve discorrer necessariamente à volta das grandes questões existenciais: Quem somos? Qual a razão da nossa existência? Em que consiste a minha condição humana? O que me liga ou separa dos demais? Porque ajo de uma ou de outra maneira…?
Este tipo de práticas meditativas leva-nos para lá da pressão esmagadora das aparências e capacita-nos a validar ou refutar a impressão superficial que temos das coisas e das situações. O não realizar tais reflexões metafísicas em solidão traz consigo, como disse Shoghi Effendi (ndr: Guardião da Fé Bahá, entre 1921 e 1957), todos os males que uma alma é capaz de revelar: “a perversão da natureza humana, a degradação da sua conduta, a corrupção e o desmoronamento das instituições; o carácter humano envelhece, perde-se a confiança, os nervos da disciplina relaxam, silencia-se a voz da consciência, distorcem-se os conceitos de dever, de solidariedade, de reciprocidade e de lealdade, e extingue-se paulatinamente o próprio sentido de paz, felicidade e esperança”.
Na rotina diária de Benjamin Franklin, um dos espíritos mais ilustres e cultos, podemos constatar que todos os dias ao acordar, às cinco da manhã, meditava sobre “The morning question: What good shall I do today” (questão matinal: que bem poderei fazer hoje); e ao deitar-se, às nove da noite, reflectia sobre “The evening question: Examination of the day” (questão nocturna: exame do dia).
É verdade que, tal como realçou Arendt, o ponto de partida é sempre os acontecimentos particulares e as situações concretas. E é verdade que, tal como mostrou Javier Gomá (ndr: escritor e ensaísta espanhol) na sua magnífica tetralogia da exemplaridade, a consciência moral, o hábito de escolher segundo princípios éticos universais, constrói-se e forma-se sempre a partir do caso concreto e do exemplo. Mas apenas a experiência do juízo interior, em solidão, nos ilumina e ajuda a distanciar-nos da realidade conforme a supomos, a examinar as aparências e a deixar de presumir aquilo que parece evidente, com o objectivo de discernir entre o certo e o errado sobre os nossos actos concretos, entre o justo e o utilitarismo das nossas intenções, e entre a co-responsabilidade e o egoísmo dos nossos planos.
Daí que a estrutura das meditações existenciais e morais seja sempre aquilo que em filosofia se denomina de pensamento crítico. Trata-se de um livre e indeterminado discorrer de pensamento, que expressa valorações e não definições ou conclusões. Um desses melhores modelos na nossa tradição Ocidental são os diálogos socráticos: todos eles se interrogam em relação a questões absolutamente cruciais para as nossas vidas: O que é o bem? Onde encontrar a beleza? Como encontrar a verdade? É a nossa alma imortal? Em que consiste a justiça? Porém, estes diálogos nunca chegam a definir nenhuma destas ideias; não encontram a fórmula mágica para descobrir a essência dessas questões: o importante são os frutos que se vão recolhendo durante o próprio caminho deste processo de pensamento acerca das questões.
Este tipo de diálogo da pessoa consigo mesma requer atender de forma cuidada e respeitosa a voz da alma que nos sussurra ao ouvido. Ao escutá-la fortalece-se a nossa consciência, dificulta-se o esquecimento e exemplifica-se a nossa acção. Por fim, sucede no nosso interior o que Eugenio Trías (ndr: filósofo espanhol, falecido em 2013) denomina de acontecimento ético: uma deslocação do nosso ethos.
Apenas as mentes reflexivas, aquelas que praticam a meditação existencial, conseguem evitar que o mundo as distraia e as compele. Só elas cumprem a máxima socrática de que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Para tal há que exercer, em alguns momentos, a contemplação; afastar-se dos afazeres mundanos e colocar-se na posição de espectador da própria vida, das coisas no seu conjunto e da nossa verdadeira identidade. “Não é através da acção, mas da contemplação que se revela o ‘algo mais’, isto é, o significado do todo”, disse Arendt. ●