Mindfulness para pessoal humanitário em apoio aos refugiados sírios
Ensinar trabalhadores humanitários a construir resiliência por forma a lidar com o stress envolvido na ajuda no terreno daqueles que se encontram em situações limite
Por Hugh Byrne | Rodi Said/Reuters (foto) in mindful.org | 14 de dezembro de 2016 ver artigo original
Vinte e cinco trabalhadores humanitários estão sentados, olhos fechados, com uma atenção gentil à respiração, sensações corporais, emoções e pensamentos. Local: um hotel na Jordânia, junto ao Mar Morto. Recentemente chegados da linha da frente da crise dos refugiados sírios – Líbano, Turquia, Síria, Iraque e de alguns campos na Jordânia -, o grupo está a participar num programa de resiliência baseada na contemplação (CBR, sigla em inglês) para pessoal de organizações humanitárias.
As responsabilidades atribuídas a estas organizações na crise síria são bastante vastas e exigentes: ajuda médica aos feridos e doentes, distribuição de alimentos e de alojamento aos deslocados, assistência jurídica, assegurar que fundos e donativos são utilizados de forma controlada e responsável, são algumas delas. A tudo isto, acresce ainda serem alvo frequente de ataques, como atesta o bombardeamento aéreo a uma coluna de ajuda da ONU na Síria, em meados de setembro de 2016, que matou 20 voluntários que se encontravam a descarregar alimentos num armazém.
Todos os participantes do curso prestam ajuda no Médio Oriente. Cerca de dois terços são oriundos de países da região, sendo o arábico a sua primeira língua; os restantes vêm da Europa e da América do Norte. Ao longo de quatro dias exploraram práticas de meditação, movimentos mindfulness e formas de entendimento e resposta ao stress, capazes de lhes proporcionar ferramentas que lhes possam ser úteis no terreno.
Trauma e trabalho humanitário
O programa CBR foi criado com vista a dar resposta aos crescentes desafios colocados aos trabalhadores humanitários hoje. Existem atualmente mais de 60 milhões de refugiados e desalojados no mundo, sendo este o valor mais alto desde o final da II Guerra Mundial. No entanto, os níveis de ajuda aos 250 mil trabalhadores humanitários estimados não tem acompanhado o ritmo da demanda por tarefas cada vez mais diversificadas com que se confrontam.
Ao mesmo tempo que os pedidos de ajuda crescem, os voluntários têm-se tornado eles próprios alvo de ataques, algo sem precedentes até há uma geração: de 41 em 2000 a 190 em 2014, tendo nesse mesmo período sido mortos, feridos ou raptados 3000 voluntários.
Como resultado deste aumento de pressão e stress, um número crescente de voluntários no terreno vêm sentindo problemas de saúde mental: numa pesquisa organizada pelo jornal britânico The Guardian, 79% entre 754 trabalhadores humanitários disseram já ter sofrido deste tipo de problema: ansiedade, depressão, ataques de pânico, perturbação de stress pós-traumático (PSPT) e alcoolismo foram dos mais referenciados. Uma organização internacional de ajuda médica reportou que um terço do seu pessoal abandonou a organização após a primeira missão. Ao mesmo tempo, a ajuda sociopsicológica a estes voluntários é vista – embora bem intencionada – como altamente insuficiente.
O resultado final é que cada vez mais estes trabalhadores estão a ser vítimas de trauma e de outras condições de saúde mental, abandonando o trabalho no terreno mais cedo; as organizações humanitárias operam de forma menos eficaz, com custos mais altos e maior rotatividade; e, finalmente, os refugiados recebem ajuda de pior qualidade devido à alta rotatividade dos voluntários no terreno, à sua menor experiência e aos seus elevados índices de stress.
Culpa, vergonha, stress e mindfulness
Emmett Fitzgerald, diretor do programa CBR, conhece ambas as faces deste problema. Enquanto trabalhador humanitário no Haiti, na República Democrática do Congo e no Nepal participou em missões de ajuda a grandes crises humanitárias. No entanto, após meses no terreno no pós-terramoto no Haiti, houve um acontecimento que lhe mostrou como ele próprio tinha sido apanhado pelo stress: após minutos de espera num semáforo, ruminando em como ia chegar atrasado a uma reunião com um chefe de temperamento difícil, explodiu num acesso de ira em relação uma criança que lhe pedia esmola. Este caso serviu de sinal de alarme: “No que é que me tornei?”, interrogou-se. Um ano mais tarde, Fitzgerald participava num curso de CBR orientado por Sharon Salzberg, em Cork, Irlanda.
Os participantes do programa na Jordânia confrontam-se com fatores stressantes como os de Fitzgerald: riscos ao nível da segurança, situações de emergência, carga horária pesada, longas viagens frequentemente em condições difíceis, separação de familiares e amigos, instabilidade no financiamento dos projetos. A tudo isto acresce ainda as dificuldades normais inerentes a qualquer trabalho: grandes quantidades de emails para gerir, balanço sobre opções de trabalho e de vida, problemas com funcionários, colegas e chefias. Uma voluntária com seis anos numa grande ONG de ajuda humanitária, referiu-se à sensação de impotência que se sente por vezes perante o que são as necessidades das pessoas e aquilo a que se é capaz de dar resposta. Este facto pode conduzir a um sentimento de culpa e vergonha em relação a uma situação de relativo privilégio e à incapacidade para se fazer mais.
Burnout não é falha nem patologia
Ola Witkowska, especialista em saúde mental dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), recentemente chegada de missões no Sudão do Sul e no Iraque de ajuda a trabalhadores humanitários no terreno, dirigiu a área psico-social do curso na Jordânia e partilhou o seu pensamento sobre o programa CBR. “Para mim, uma grande força da abordagem CBR está em colocar em conjunto a compreensão do stress e como podemos construir resiliência face aos inevitáveis fatores stressantes da vida e do trabalho, através de práticas experienciais (formais e informais) capazes de construir consciência, cultivar um maior equilíbrio emocional e um fortalecimento de laços com o outro. Tratam-se de práticas que eu aplico a mim mesma (e noto quando não o faço) e fui capaz de constatar o seu valor em relação a mim e ao meu trabalho com os outros.”
Stephanie Kohler, responsável pelo segmento ‘movimentos mindful’ do mesmo curso, realçou a importância do movimento na abordagem CBR: “O movimento, de forma intencional e direto, é um componente essencial do mindfulness. Na prática CBR debatemos formas alternativas de reação ao stress, tanto agudo como crónico. Nas minhas aulas, realço o facto do nosso corpo nos fornecer uma informação constante. A partir dessa consciência, os participantes utilizam os movimentos mindful para envolver o sistema nervoso parassimpático, o qual tem um papel regulador e de recuperação do stress e, consequentemente, de criação de resiliência. Os movimentos mindful não só são eficazes, como estão totalmente disponíveis.”
Um programa CBR típico reúne entre 20-30 pessoas provenientes de vários grupos de ajuda humanitária para um curso a realizar num meio ambiente que seja calmo e relaxante, dando aos participantes a oportunidade para se conhecerem e passarem algum tempo juntos. O propósito é dar-lhes valências e ferramentas que lhes permitam construir a sua própria resiliência e providenciar-lhes um apoio continuado. O objetivo, com o tempo, é contribuir para a construção de uma cultura de apoio a este tipo de práticas nas diversas organizações e, de uma forma mais alargada, em toda a comunidade de ajuda humanitária.
Uma das participantes realçou no curso a atitude de bondade sem julgamentos inerente ao programa e como o burnout era tratado, não como uma falha ou uma patologia, mas como uma consequência compreensível do stress, particularmente quando valências e ferramentas de resposta não estão disponíveis.
Saúde mental e bem-estar
O programa CBR tem objetivos ambiciosos, disse Fitzgerald. “Queremos mudar a forma como as organizações cuidam do seu pessoal, queremos que elas reconheçam que as pessoas são o seu recurso mais importante. Queremos que as organizações de ajuda humanitária invistam no bem-estar e na longevidade de funções do seu pessoal, até como reconhecimento de que os seus destinatários (refugiados e deslocados) merecem a ajuda de pessoas altamente apaixonadas e motivadas, de espírito desanuviado e livres do desgaste do stress não resolvido.
“Acreditamos que existe um argumento moral e ético a favor deste tipo de ajuda, assim como uma justificação última. Programas como o CBR podem ajudar estas organizações a reduzir custos com assistência médica e seguros de saúde, a minimizar a rotatividade de pessoal e consequente perda de conhecimento institucional e a diminuir custos de recrutamento. E se no mundo dos negócios estas poupanças teriam como destinatários um dono ou um conjunto de acionistas, no campo da ajuda humanitária elas podem ser canalizadas na ajuda às enormes necessidades dos refugiados e deslocados. Acreditamos que estamos perante uma fórmula vencedora.”
Um insight chave que todas as áreas do programa CBR procuram reforçar é como a forma como tomamos conhecimento dos nossos estressores e dificuldades constituem uma importante determinante em relação ao nosso sofrimento/felicidade. Muitos dos participantes partem levando consigo a frase de Viktor Frankl (psiquiatra austríaco do século passado e fundador da escola da logoterapia): “Entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço reside a nossa capacidade de escolha. Na nossa capacidade de escolha reside o nosso crescimento e a nossa liberdade.”
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Nota: Cursos CBR têm tido lugar na Irlanda, Estados Unidos, Ruanda e Jordânia. Quatro novos cursos estão planeados na Jordânia em 2017 para trabalhadores humanitários junto de refugiados na região do Médio Oriente. Para saber mais sobre o programa CBR, visite a página web do Garrisson Institute. Donativos de apoio ao programa podem ser feitos em: http://www.changingaidwork.org