A partir do ensaio filosófico de Albert Camus, “O mito de Sísifo”, Radhule Weininger/The Santa Barbara Independent lança um novo olhar sobre o sofrimento daquela figura mitológica como um modelo de felicidade dirigido à humanidade. Foto de Dylan Siebel/Unsplash
Nestes tempos difíceis e imprevisíveis, somos muitos os que sentem uma grande dose de incerteza e receio.
Quando olho para algumas pessoas minhas conhecidas, gente empenhada no seu trabalho a favor do bem-estar universal, em áreas como os cuidados de saúde, o ambiente e os direitos dos imigrantes, penso em Sísifo, o herói grego condenado pelos deuses a realizar um trabalho por toda a eternidade: empurrar, com enorme esforço, uma grande pedra até ao cume de uma montanha para, sempre que perto de atingir o topo, vê-la rolar montanha abaixo até ao ponto de partida devido a uma força irresistível. Alguns vêem Sísifo como o sofredor por excelência, condenado a repetir para sempre o mesmo trabalho inútil e sem esperança.
Tal como a mítica figura grega, muitos de nós vivemos a achar que a pedra que carregamos montanha acima está prestes a voltar a rolar encosta abaixo, temendo que toda a nossa dedicação possa ser simplesmente inútil.
Um dos escritores mais conhecidos a debruçar-se sobre este mito foi o existencialista Albert Camus, o qual propõe uma visão alternativa e inspiradora de Sísifo. Em O mito de Sísifo, Camus olha para o herói como alguém que desafia os deuses porque estes abusaram do seu poder. O castigo que lhe é imposto pela sua coragem é carregar uma pesada pedra montanha acima. Na interpretação de Camus, Sísifo está perfeitamente ciente da sua situação, das suas causas e do seu futuro. Segundo o escritor, o herói grego empurra a sua pedra com uma postura de sabedoria, dignidade e até de alegria, escolhendo estar presente à sua tarefa. Sabendo que não tem outra opção senão empurrar, repetidamente, a pedra até ao cimo, ele usa a única escolha que lhe resta, transformando e substituindo o sofrimento em satisfação.
Vejo Sísifo como alguém profundamente presente àquilo que existe; ele abraça o absurdo, o que Camus viu como o resultado da nossa busca por um significado num mundo sem sentido. Sísifo percebe que ao voltar-se para as partes está a voltar-se para o todo. Camus escreve “… cada partícula desta pedra, cada clarão mineral desta montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo.” Ao envolver-se no seu próprio mundo, ao mostrar uma atitude mindfulness de bondade e de plena presença, Sísifo envolve-se com o mundo todo.
Recentemente, durante um retiro de meditação, senti-me compelido a reflectir sobre essa pedra e a relação de Sísifo com ela. E acabei sempre a concluir o mesmo entendimento fundamental da vida: na medida em que cuidamos do nosso mundo pessoal com uma atenção amorosa, estamos a cuidar também do todo. Penso, com isto, em muita gente que conheço que perante obstáculos aparentemente intransponíveis dão tudo de si para ajudar o mundo: o meu amigo Manny Jesus, um professor de psicologia aposentado, e a sua luta incessante junto das autoridades municipais para assegurar a protecção e o bem-estar de jovens americanos de origem mexicana; Nancy e outras sete mães, particularmente preocupadas com o destino das futuras gerações, que se reúnem enquanto os seus filhos estão na escola para mandar petições a congressistas sobre cuidados de saúde, educação e ambiente.
“Ao envolver-se no seu próprio mundo,
ao mostrar uma atitude mindfulness
de bondade e de plena presença,
Sísifo envolve-se com o mundo todo.”
O que aconteceria se todos nós pudéssemos olhar para esse rochedo de uma nova forma? Não como um fardo de um qualquer Sísifo a empurrar a sua pedra particular montanha acima, mas como um fardo comum, de todos, a pesada e agreste rocha da nossa “condição humana”? O que seria se, completamente despertos, pudéssemos abraçar essa nossa “condição humana”, decididos a carregar o pedragulho em favor de todos? Olhando para cada pequeno acto como uma acção de compaixão e solidariedade, no entendimento de que todos temos a tarefa de fazer mover em frente a pedra da nossa condição humana, damos sentido à nossa vida.
Acabei por ver Sísifo como um bodhisattva, um ser iluminado que decide abdicar da sua entrada no Nirvana para poder permanecer junto dos outros, até que o último ser humano em sofrimento seja salvo. Segundo a tradição budista, o bodhisattva age movido apenas pelo amor e sem ter em conta qualquer recompensa imediata. O seu insight é estarmos todos conectados, todos relacionados, dando origem ao seu profundo amor.
Joanna Macy, académica budista e activista de causas sociais, diz que “se tomarmos bodhichitta (o desejo pelo bem-estar de todos os seres) como nosso fundamento de vida, então, independentemente do que estiver a acontecer, é isso que nos norteará.”
O Sísifo de Camus é alegre. Ele alegra-se à medida que toma o seu destino nas próprias mãos e escolhe ser personagem por vontade própria.
O que acontece quando Sísifo caminha montanha abaixo ciente do contacto dos seus pés com a terra, antes de decidir (escolher) voltar a segurar a pedra? Enquanto o meu Sísifo vagueia montanha abaixo seguindo a força da gravidade, ele está num estado de fluxo. Esse momento dá-lhe o alívio e o abrigo para estar com o que existe no momento, com iluminação e visão.
Na medida em que nos damos ao outro com amor, começamos a transcender a solidão, a separação e o medo. Ao reflectir no meu compromisso com o mundo actual, noto um sentimento de liberdade. Vejo-me a abraçar vários projectos, movido por vontade própria e pelo sentimento de ternura que nutro pelos outros seres. ●