O evangelho feito neurociência, com Marta no hemisfério esquerdo e Maria no direito. Entrevista com frei Laurence Freeman, monge beneditino da Congregação de Monte Oliveto e líder da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, uma comunidade contemplativa ecuménica.
Por Víctor Amela, Ima Sanchís e Lluís Amiguet
in La Vanguardia ver artigo original
Numa altura em que há cada vez mais gente a citar as virtudes do mindfulness, como se se tratasse da última moda chegada do Oriente, Laurence Freeman explica que não é nem moda, nem é oriental. Trata-se, antes, de um regresso às técnicas de higiene mental e de concentração que eram prática no Ocidente até terem sido relegadas para os mosteiros. Durante séculos, vimo-nos assim privados de uma ginástica cerebral imprescindível ao bem-estar. Reduz a ansiedade, o stress, a hiperactividade e ajuda a gerir o excesso de ego com o qual pretendemos compensar outras deficiências. Com esse autodomínio chega-se à meditação, com a qual se atingirá que o “eu” é parte do todo. É deixar ser até sentir tudo e nada com o universo.
Desde executivos a jogadores de futebol, toda a gente fala de mindfulness. Isso deixa-o feliz?
Fico feliz por eles. Na realidade não se trata de nenhuma voga mas antes de um regresso, porque através destas técnicas não fazemos mais do que nos reintegrar-mos numa tradição que tínhamos perdido.
Mas perdemo-la quando e porquê?
Os primeiros cristãos recitavam mantras de relaxamento e concentração para atingir a presença plena. Porém, no Ocidente, essas técnicas foram sendo esquecidas e as nossas orações passaram a ser mais cerebrais. Há excepção da Igreja Bizantina, que as manteve e ainda as pratica.
E ainda rezam com salmodia hipnótica.
Ao contrário, na Igreja Romana a contemplação foi relegada para os mosteiros e reservada aos místicos e, fora deles, acabou por ser vista com alguma suspeição. E assim se perderam as técnicas paleocristãs de controlo mental.
Sendo que elas são higiene pura.
É por isso que eu as ensino agora aos que não são crentes, da mesma forma que um hospital católico atende ateus que aparecem com um braço partido. No entanto, esta perspectiva tão prática e a generalização do seu ensino e utilização parece preocupar alguns budistas.
Porquê?
Porque também se pode aplicar essas técnicas de concentração e atenção plena para se ser melhor corretor de bolsa de valores ou melhor franco-atirador na guerra. Dominar a capacidade de foco pode servir os piores fins.
Ou ser um mero ibuprofeno sem comprimido.
Por isso, eu começaria por diferenciar entre os benefícios e os frutos do mindfulness. E, só depois, falarei de transcendência.
Não é a mesma coisa?
Os benefícios valoráveis dessas técnicas não são transcendentes, apenas imediatos e evidentes: diminuem a tensão arterial, melhoram o sistema imunológico e a saúde cardiovascular, reduzem a ansiedade e o stress…
Tudo isso só com o meditar?
Apenas pela utilização de técnicas de concentração e respiração. Ao que acresce, mais tarde, outros benefícios. Tenho um aluno que foi marine na guerra e que quando veio ter comigo disse-me ser ateu, mas que vinha aprender connosco a relaxar. Respondi-lhe que não tinha nenhum problema com isso.
Funcionou?
Como bom militar, era um tipo disciplinado; sim, e foi capaz de impor a si próprio meia hora de meditação ao nascer e ao pôr do sol, que são as melhores alturas.
E…?
A sua mulher pediu-lhe que continuasse a praticar mindfulness porque, desde que ele meditava, passou a ouvi-la. Antes, quando ela falava, ele olhava para o teto, para a televisão ou para o jornal, mas não para ela.
De marine a homem santo.
Diria apenas que ele é agora um melhor marido e que a sua mulher também será melhor com ele. Além dos benefícios, esses são os frutos do mindfulness: faz-te mais paciente, calmo, agradável, sensível, empático. O que é notado pelos outros.
Pode-se ir além disso?
O mindfulness é uma técnica com a qual te aprofundas em ti mesmo e melhoras o teu autoconhecimento e auto-aceitação. Como tal, serve de preparação para a meditação transcendental, através da qual a consciência começa a expandir-se e a tomar contacto com algo maior do que o próprio.
E isso já é uma religião?
Uma vez mais, não necessariamente. É, isso sim, uma tradição, e uma experiência renovadora a partir da qual olhas o mundo já não apenas a partir de ti próprio, mas a partir de ti e de todos até chegares a dissolver-te numa espécie de consciência universal. E não é fé, é praxis. Vivemo-la.
Parece estar muito seguro disso.
Desta forma, o cristianismo apresenta-se universal. Quando Jesus disse: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita”, falava dos dois hemisférios do cérebro.
Era neurocientífico avant la lettre?
Exactamente, porque o hemisfério esquerdo é autoconsciente: analisa, elucida, categoriza; e o direito é intuição, contemplação e faz parte do fluxo dos acontecimentos em presente contínuo. O equilíbrio consegue-se ao conectar ambos os hemisférios, e a meditação ajuda a consegui-lo.
O evangelho enquanto manual de neurociência.
Também na passagem de Maria e Marta: uma contemplava o mundo com Jesus, enquanto a outra se preocupava com as tarefas domésticas.
Uma atarefada e a outra fruindo.
Jesus disse: “Marta, Marta, andas preocupada e aflita (trata-se de ansiedade) com tantas coisas, quando uma só é necessária, e essa é que tu e a tua irmã estejais em harmonia”. Jesus refere-se assim à união do cérebro racional e o contemplativo.
Uma bonita exegese, mas não será esse um ponto arriscado?
De todo! Trata-se do evangelho e ele incentiva-nos a beneficiar da conexão entre o hemisfério racional e o contemplativo. Incita-nos a meditar. É esse o seu sentido.
A sós ou acompanhados?
Das duas formas, embora a nossa preferência vá para nos ajudarmos em grupo a meditar. E com crianças; é incrível como elas rapidamente se conectam de forma instintiva com a técnica e aprendem a concentrar-se, tanto na escola como na vida.
Oxalá possam gozar de uma comunidade relaxada.
É isso que deveria ser o cristianismo. Basta 20 minutos, duas vezes ao dia (ou comece-se com aquilo que se for capaz). E comprove-se.