Consciência: a mente a brincar com a mente

Será a consciência um jogo de enganos que o cérebro joga consigo mesmo? Haverá matéria mental que não apareça nas TAC? A ciência debate-se para perceber se nós, humanos (ou até mesmo um termostato), possuímos matéria para além da substância física.

George Johnson/The New York Times
Ricardo Campos (ilustração)
Publicado anteriormente na Mindmatters magazine Nº1

Um artigo publicado no The British Medical Journal, em Dezembro de 2015, dizia que a psicoterapia cognitivo-comportamental é tão eficaz quanto o Prozac ou o Zoloft no tratamento da depressão aguda.

Através de formas que ainda ninguém sabe explicar como, a psicoterapia pela fala chega à nossa rede biológica afectando o fluxo de neurotransmissores no cérebro. Diferentes estudos têm encontrado resultados em tudo semelhantes ao mindfulness, uma forma de meditação inspirada no budismo onde os pensamentos são deixados fluir calmamente como nuvens reflectidas nas águas de um lago.

Este tipo de descoberta tornou-se tão comum que somos levados a desvalorizar as suas implicações específicas.

A depressão pode ser tratada de duas formas radicalmente distintas: ou através da alteração do cérebro por químicos ou da mente por meio da psicoterapia. Mas, ainda assim, não somos capazes de explicar como é que a mente emerge a partir da matéria ou como é que ela actua no cérebro.

Este velho enigma – a questão mente/corpo – foi sucintamente descrito pelo filósofo David Chalmers num recente simpósio na Academia de Ciências de Nova Iorque: “Há um consenso científico e filosófico de que não existe uma alma ou um ego não-físico ou, pelo menos, de que não existem evidências dessa existência”, disse.

O dualismo de Descarte – espírito e corpo enquanto entidades separadas – é uma noção que há muito vem perdendo terreno na ciência. O desafio actual é conseguir explicar como é que o mundo interior da consciência desponta a partir da matéria do cérebro.

Michael Graziano, um neurocientista da Universidade de Princeton, sugeriu no mesmo simpósio que a consciência é uma espécie de jogo de enganos que o cérebro joga consigo mesmo. O cérebro é um computador que evoluiu para simular o mundo exterior. Entre os seus modelos internos encontra-se uma simulação de si mesmo, uma aproximação grosseira do seu próprio processo neurológico.

O que daí resulta é uma ilusão. Em vez de neurónios e sinapses, temos a sensação de uma presença quase fantasmagórica – um self – dentro da cabeça. Porém, tudo isso não passa de processamento de dados.

“A máquina erroneamente pensa que possui magia dentro de si”, disse o dr. Graziano. E chama-a de magia da consciência. Porém, para ele, o mistério não está na existência desta voz. “O fenómeno que precisa ser explicado é a razão porque o cérebro, enquanto máquina, insiste em ter uma propriedade não-física”, disse.

Este debate faz-me lembrar a última peça de teatro de Tom Stoppard, “The Hard Problem”, onde uma jovem investigadora de psicologia, de nome Hilary, sofre de um caso agudo da mesma doença descrita pelo dr. Graziano. Certamente que o cérebro é mais do que biologia, insiste ela com o namorado, um empedernido materialista de nome Spike. Deve haver “matéria mental que não aparece nas TAC.”

Tom Stoppard foi buscar o título da sua peça a um trabalho do dr. Chalmers. O “easy problem” explica, pelo menos em princípio, como o processo de pensar, a memória e a atenção, entre outros, são mera computação neurológica. Já quanto ao verdadeiro problema – o porquê de todos estes processos darem a sensação de alguma coisa – “não há nada como um consenso em relação a uma teoria ou até mesmo à volta de um palpite”, afirmou o dr. Chalmers durante o simpósio.

Ou então, como coloca Hilary na peça de Stoppard: “Qualquer teoria apresentada em relação ao problema da consciência tem o mesmo grau de demonstrabilidade que a intervenção divina.” Há sempre uma lacuna na explicação de um milagre.

A personagem de Stoppard recusa a ideia de emergência: se se conseguir “encaixar” uma quantidade suficiente de componentes desprovidas de sensações (neurónios, microchips), a consciência vai aparecer. “Quando observamos com atenção, o corpo é feito de coisas e as coisas não têm pensamentos”, diz Hilary.

Os partidários da emergência, actualmente predominante entre os cientistas dedicados ao estudo da mente, tendem a defender os seus pontos de vista através de metáforas. As propriedades da água – humidade, incolor, a sua capacidade de reflexão cintilante – advém da interacção entre os átomos do hidrogénio e do oxigénio. De forma semelhante, a vida surge a partir de moléculas.

Uma vez que já não acreditamos na existência de uma força de vida divina, num élan vital, qual é, então, a grande questão em relação ao que é consciência?

Por falta de um mecanismo preciso capaz de descrever como é que a mente é gerada pelo cérebro, alguns filósofos e cientistas têm recuado até ao ancestral pampsiquismo, doutrina que defende a ideia de que a consciência é universal, existindo numa espécie de matéria psíquica no interior das moléculas e dos átomos.

A consciência não precisa nascer. Ela faz parte da constituição da matéria, talvez como uma espécie de efeito quântico mecânico. Um dos desenvolvimentos mais surpreendentes desta última década é como estas ideias evoluíram para além das franjas marginais da comunidade científica. Três sessões de pampsiquismo aconteceram durante uma Conferência sobre Ciência da Consciência, que teve lugar no início de 2016, em Tucson.

Esta não é a primeira vez que a ciência se encontra num impasse, propondo como escapatória um novo ingrediente de importância fundamental. Matéria negra, energia negra, ambas já foram evocadas, no passado, para resolver questões que se apresentavam de difícil solução.

Max Tegmark, físico do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), também ele orador no mesmo simpósio de Nova Iorque, propõe a existência de um estado da matéria – tal como os estados sólido, líquido e gasoso – ao qual dá o nome de perceptronium: átomos formados de tal forma que possam processar informação e dar origem à subjectividade.

O perceptronium não tem que ser necessariamente biológico. A hipótese lançada pelo dr. Tegmark foi inspirada em parte pelo neurocientista Giulio Tononi, cuja teoria da informação integrada tornou-se num dos principais factores da ciência sobre a natureza da consciência.

Esta teoria, fortemente apoiada na matemática, propõe que aparelhos tão simples quanto um termostato ou um diodo fotoeléctrico possam conter vislumbres de consciência, um self subjectivo.

Nem tudo é consciência à luz desta teoria, apenas substâncias, como o perceptronium, capazes de processar informação de algumas formas complexas. O dr. Tononi chegou mesmo a inventar um aparelho, de nome phi, supostamente capaz de medir o quão consciente é uma determinada entidade.

Esta teoria tem os seus críticos. A partir do parâmetro phi, Scott Aaronson, um cientista de computação conhecido pelo seu cepticismo e humor cáustico, calculou que uma grelha relativamente simples de circuitos lógicos digitais – algo semelhante a um circuito de detecção e correcção de erros de um aparelho de DVD – pode ser várias vezes mais consciente do que um cérebro humano.

Uma possibilidade que o dr. Tononi não coloca de parte. Como é que seria “ser” este aparelho? Simplesmente, não sabemos. Compreender a consciência poderá obrigar a um “terramoto” na forma como a ciência analisa a realidade.

Ou talvez não. À medida que os computadores vão sendo cada vez mais complexos, pode ser que um dia haja um que nos surpreenda com uma conversa inteligente e espontânea, como acontece na rede neural artificial do livro Galatea 2.2, de Richard Power.

Poderemos entender tão bem o que está a acontecer quanto (não) percebemos a nossa voz interior. Os filósofos argumentarão sobre se o computador é realmente consciente ou se apenas simula consciência… e se haverá alguma diferença nisso.

Se o computador ficar deprimido, qual é o equivalente computacional ao Prozac? Ou como é que um terapeuta, humano ou artificial, começa um processo psicoanalítico de cura?

Talvez a máquina possa compilar os conselhos do terapeuta e transformá-los em instruções de autoprogramação ou para seleccionar pequenos robots para repararem os seus circuitos eletrónicos.

Talvez ela dê consigo perdida no seu próprio dilema mente/corpo… Mas, nesse caso, nós, humanos, não vamos ser grande ajuda.

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